O que é ser brasileiro? Como esta identidade foi construída? Quais elementos foram levados em conta nesta afirmação de uma identidade nacional? Que outros elementos histórico-sociais são excluídos desta identidade? E que armadilhas ideológicas essa noção de identidade nacional pode armazenar? É de fato liberal quem assim se anuncia?
O texto busca as raízes dessa identidade – através de uma argumentação longa, cerrada, dialética – no pseudoliberalismo brasileiro construído desde a época colonial. De modo que as possíveis virtudes progressistas do modelo original europeu, que sempre foram ideologia também na Europa e nos EUA, aqui são mero discurso oco, que se invertem totalmente em seu contrário, escondendo tendências autoritárias, regressivas e criptofascistas, numa confusão absoluta de liberdade, dominação e impunidade.
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Um certo esboço de identidade nacional foi se construindo nos momentos de choque de interesses entre a Metrópole portuguesa e os habitantes de sua Colônia na América. Para ser mais exato, no momento em que a elite de proprietários brasileiros e uma parte das camadas médias da Colônia se conceberam como uma nação espoliada pela Coroa portuguesa. Uma “nação” que poderia ter um destino diverso com base em leis próprias e num mercado interno. Os movimentos de afirmação nacional, que floresceram um pouco por toda parte, culminaram no Século XVIII “liberal”, na famosa Inconfidência Mineira, influenciada pelas experiências de emancipação nacional norte-americana e as revoluções burguesas na Europa.
Uma Grande Farsa

O Liberalismo no Brasil sempre foi, no entanto, uma grande farsa. Pois o que era ser brasileiro? Era ser um indivíduo moderno e liberal de fato? Questão embaraçosa. Não sabíamos de imediato como definir a nação, muito menos uma identidade nacional brasileira ou um indivíduo supostamente autônomo segundo as tradições do Centro Metropolitano.
Seríamos de fato um povo formado e unificado, uma nação moderna como as constituídas na Europa ou na América do Norte com base na liberdade e na igualdade de todos perante a lei? Não, não éramos, pois mantivemos os princípios básicos da estrutura colonial: continuamos a ser uma ex-colônia formada essencialmente pelo trabalho escravo, mantendo todas as outras peças do modelo de colonização de exploração ou de plantations (latifúndio, exportação de produtos primários, acumulação hiperconcentrada na mão de oligarquias).
Permanecemos como um puro mercado de tipo semicolonial ou uma simples economia dependente das potências hegemônicas, especialmente da Inglaterra e, mais tarde, dos Estados Unidos. Noutras palavras, em lugar de um povo a ser representado, tínhamos uma pequena elite que se representava como “a” nação civilizada e autônoma – ela mesma autoenganada nesta operação política porque continuava subalterna aos países hegemônicos.
O que resta do sujeito dito liberal: braços, coisas, extensões de um território dominado
Além disso, em termos de sociedade tínhamos menos um “povo” do que um conjunto de “braços”, os “braços da lavoura”, isto é, uma grande massa de homens convertidos em mão de obra escravizada, desumanizada, silenciada e vendida como “coisa” em praça pública, além de uma série de agregados e dependentes dos grandes proprietários e burocratas do Estado.
Em lugar de uma nação autônoma feita de “indivíduos”, éramos muito mais um mercado de escravos e de matérias-primas dominado pelos grandes proprietários, que se apossaram do Estado por meio da formação de oligarquias regionais. Uma elite numericamente pequena, autoritária e racista, de costas para a verdadeira “nação”, a qual era simbolicamente anulada ou tornada invisível, quando não reprimida, torturada e assassinada. Por isso aqui uma identidade liberal sempre foi um conto da carochinha, ou antes, um conto de zumbis.
Os geógrafos costumam dizer que fomos até hoje muito mais um território do que uma nação. Em vez da nação, construímos um Estado oligárquico e um território de exclusões. Um Estado de ideologia mais ou menos liberal, pois na prática conservador e capturado por interesses privados. O território nacional estava dividido em regiões fragmentadas, que mal se articulavam como país unificado.
Daí a violência estatal, várias vezes utilizada durante o Império, para destruir rebeliões provinciais e unificar à força uma nação praticamente inexistente. Na realidade, portanto, desde a origem fomos muito mais um espaço territorial em que se exerce um poder político e econômico centralizado do que uma sociedade, um conjunto de “indivíduos” que manteriam relações livres e autônomas.
Aqui, o direito liberal de propriedade privada se contradizia e se invertia no que ele é, em essência, também no Centro europeu e norte-americano: privação de liberdades para a massa popular, tida como “infantil”, “incapaz de ter voz” e “perigosa” pelos ideólogos liberais originais do centro, por isso mesmo destinada a ser pura massa de trabalho alienado. Sob a ótica das classes dominantes brasileiras isso convertia os próprios homens em parte de uma extensa realidade territorial a ser dominada:
“o país colonial, fruto de uma expansão que lhe é externa, nasce no bojo de uma concepção de território a conquistar, isto é, sob o signo da violência. Tal pecado de origem perpetua-se ao longo de nossa formação histórica. A imagem da terra a ocupar é bastante cara às classes dominantes, a população sendo vista como um instrumento desse processo. A visão do espaço a se ganhar é recorrente, do colonizador lusitano ao fazendeiro paulista que conquista as terras do Oeste. Para o primeiro, as populações nativas eram parte dessa natureza, dádivas do solo a serem exploradas (…). Para o segundo, o homem é apenas um instrumento a serviço da realização do produto local, o boi, ou a planta, ou o minério. (…) Assim vai sedimentando-se uma ótica, ao nível das classes dominantes, de claro conteúdo anti-humano, onde o país é identificado com o seu espaço, sendo a população um atributo dos lugares” (Antonio Carlos R. de MORAES, Ideologias Geográficas. São Paulo: Hucitec, 1988, p. 93-4).
A população como extensão e atributo dos lugares sob o domínio de potentados: mais ou menos uma zumbilândia liberal, em que as regras sociais foram suprimidas. O laboratório (neo)colonial revela a podridão da ideologia importada do centro: como um lugar onde anular e eliminar o outro não só é algo permitido, mas uma questão de arbítrio e oportunidade. Conforme as leis suspensas de um estado de exceção permanente.
E não é isso que revelar-se-ia hoje, novamente, também no centro: uma guerra social fratricida pelos recursos sociais e naturais que sobraram, a suspensão de direitos e garantias, enquanto a superacumulação de riqueza jaz nas mãos de oligopólios e monopólios gigantescos, mais ou menos “paralisada” pela crise do capitalismo global, guardada em paraísos fiscais e bolhas especulativas estratosféricas prestes a explodir?
Identidade perversa, eliminação do outro: o modelo casa-grande e senzala
É aqui que entra as virtualidades do nosso famoso modelo da “casa-grande e senzala”, atualizado pela urbanização gentrificada e o regime de condomínios das grandes metrópoles. Em sua origem, nossa identidade foi construída a partir desse modelo arcaico de dominação capitalista territorializada dos homens e da natureza.
Se há algo como uma “identidade brasileira” que perdura no tempo, então é desse modelo colonial que ela se origina, e não de uma liberal. Modelo em que uns mandam, outros exclusivamente obedecem; uns concebem, outros fazem; uns falam, outros calam ou são calados; uns vivem, outros sobrevivem e morrem cedo, de cansaço ou doença; em suma, uns têm o poder e fazem as próprias leis, acima da legalidade municipal ou federal, outros praticamente são máquinas ou animais do trabalho, que servem e são utilizados ou até violentados fisicamente em todos os sentidos do termo. São um “nada” – ou só imaginam ser “algo” enquanto protegidos por um Senhor. Em suma, quando obtêm algum privilégio ou uma supremacia imaginária qualquer frente a outros subordinados e espoliados da vida.
É esse modelo de ocupação econômico-territorial que contribui para formar várias relações sociais ainda hoje predominantes, e junto delas uma certa mentalidade “liberal” nada liberal face a seu modelo ideológico original: um conjunto de usos e costumes conservadores e reacionários, toda uma cultura personalista e relacional que guarda as nossas heranças mais arcaicas e às vezes inconfessáveis, que chamamos, quase sempre com certa vergonha, “identidade brasileira”. Uma identidade histórica, contudo, que está em formação e em constante transformação.
Note-se que uma tal identidade, cindida em dois (casa-grande e senzala), é um processo violento e negativo, feito de dominação, identificação forçada e exclusão do outro, que parece muitas vezes perpassar todas as camadas sociais e todos os níveis da realidade brasileira. É por isso que pobres e ricos, a elite ou o povão podem participar de elementos ambíguos e conflituosos dessa identidade cindida, pois não se identificam exclusivamente com um ou com outro desses elementos. Ela pode constituir caracteres típicos que têm dentro de si tanto a casa-grande quanto a senzala.
Examinemos mais de perto essa personalidade dita “liberal”. Como proporá Machado de Assis, essa personagem é Brás Cubas, pois Brás é o Brasil, um senhor da elite escravista, que aceita e justifica o mundo como é, com todas as suas injustiças e imperfeições, mas vivendo-as com prazer e insensibilidade, descrevendo-as com as “tintas da galhofa e da melancolia”, preso ao sistema de seus privilégios. Brás é capaz de elogiar as leis ou o mercado, mas assim o faz elogiando as leis escravistas e o trato da mercadoria escravo feita por seu cunhado Cotrim nos porões sanguinolentos. Como dirá mais tarde Mário de Andrade, em Macunaíma, “o herói da nossa gente” é um “herói sem caráter”, vivendo entre os rincões e a urbe, sem definição. Ou como Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, cujo protagonista, Riobaldo, é um jagunço letrado, mais tarde latifundiário e chefe do bando de outros jagunços, vivendo num mundo de pactos diabólicos, um “mundo muito misturado”.
No Brasil, segundo Roberto Schwarz: “os homens pobres e livres, nem proprietários nem proletários, eram forçados a viver um tipo particular de privação e de semi-exclusão. (…) Forçando a nota, digamos que na falta da propriedade só a proteção salvava alguém de ser ninguém, mas sem torná-lo um igual, já que se ficava aquém das garantias gerais do direito” (A viravolta machadiana, 2004).
Identidade perversa com o poder: a identificação com o agressor
Que identidade de homem livre poderíamos forjar sem distorcer completamente o conceito de liberdade? Um senhor de escravos é livre para violar a liberdade e a vida alheia. E um ex-escravo é “livre” apenas como uma piada de mau gosto. Daí a identificação do brasileiro com os seus próprios dominadores – que Freud explicaria com seu conceito chave para a formação do superego: identificação direta com os agressores, os donos do poder.
Como dirá José Antonio Pasta, no Brasil, a identidade dos sujeitos será contraditória e rarefeita, pois está sempre desaparecendo: “O outro é o mesmo ou, simplesmente invertendo, o mesmo é o outro” – eis a chave da nossa falta de caráter e de identidade, ou de nossa identidade vertiginosa e carnavalesca. As pessoas, como as personagens dos romances aludidos “são elas mesmas sendo igualmente o outro que lhes faz face, de modo que se pode dizer que elas se formam passando no seu outro: elas vêm a ser tornando-se o outro” (PASTA, Volubilidade e ideia fixa, 1999). O que faz a nossa identidade nacional ser a nossa falta de identidade mesma, a nossa metamorfose ambulante em torno de estruturas patriarcais e familistas. O que dá constantemente no giro de 180º de certos indivíduos ditos “liberais” no mais puro reacionarismo, elitismo, preconceito e autoritarismo, por pura “identificação com o agressor”. E como este último é um dono de terras ou cargos, trata-se de uma identificação direta com o poder territorial, em que o outro será reduzido à pura coisa, à natureza, ao espaço.
Verde, amarela e azul: os símbolos nacionais de uma identidade violenta
Vejamos agora no detalhe quais são esses elementos singulares formadores de nossa identidade volúvel e autoritária, tal como intuída artisticamente por tais romancistas e por uma série de cientistas sociais brasileiros ao longo do tempo (Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Paulo Prado, Caio Prado Jr., Celso Furtado, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Roberto Schwarz, José Antonio Pasta, Paulo Emílio Salles Gomes, Darcy Ribeiro, Milton Santos). Partamos dos símbolos mais famosos dessa identidade nacional. Será por acaso que nossa bandeira verde-amarela seja constituída pelas cores da família real portuguesa? E que mais tarde tais cores sejam associadas aos elementos da natureza, ou seja, ao território a ser conquistado pelos “donos do poder” (o verde das matas, o amarelo das riquezas minerais, o azul do céu tropical), e que assim deixe-se de lado qualquer noção positiva de sociedade ou de povo que se constitui como nação soberana?
Será por acaso que outros elementos da identidade brasileira sejam associados a coisas desse mesmo naipe naturalista: as mulheres bonitas e sensuais, os corpos expostos ao sol, as matas tropicais, as frutas, o café, o futebol, o samba e o carnaval, o índio, as belas paisagens? É daqui que o imaginário arcadista e depois romântico irá tirar todo o seu imaginário e todos os seus mitos de origem: a ideia de um país paradisíaco, de uma terra abençoada, de um povo nativo ingênuo e cordial, alegre e romântico etc. Um biombo por trás do qual se abria a terra arrasada do escravismo colonial.
O liberalismo “realmente existente” no Brasil: a canalhice liberal sem limites
Por outro lado, quando elementos propriamente sociais são resgatados para formar o cadinho da identidade nacional, temos sempre algo que lembra as raízes territoriais criadas por esse modelo do latifúndio colonial, que formaram também a cidade e o urbano no Brasil: a perversão do senso moral, a falta de escrúpulos e de valores éticos, a malandragem, o jeitinho, a personalização das relações sociais, o clientelismo e a troca de favores, a busca da intimidade e da boa relação com os poderosos, a ética da aventura, o imediatismo, a imprevidência e a falta de projetos, a inconstância dos desejos, a afetividade desabrida ou muito expressiva, a cordialidade que se transmuta em impulsos agressivos, a crueldade, a imitação, a cobiça irrefreável, a ambição de riqueza e mando, a falta de solidariedade grupal ou de confiança em regras impessoais, a preguiça, a rebeldia e a indisciplina, o gosto pelo luxo, a ostentação e o conforto sem o trabalho árduo ou com um mínimo de esforço, o fatalismo, o imobilismo, os ciclos de euforia maníaca e tristeza melancólica, os preconceitos aristocráticos e o racismo escondido ou inconfessável, o prazer do discurso retórico e vazio, a fuga da realidade em devaneios e alucinações narcísicas, o alinhamento irrefletido à opinião média ou dominante, a impossibilidade de manter a palavra empenhada, a contínua ruptura do pacto social, a cultura do golpe de estado, o individualismo crasso. Um conjunto de traços modernos – completamente funcionais ao capitalismo mais avançado – que identificam liberalismo, falta de limites, canalhice intelectual e moral, compulsão à repetição e ao automatismo.
Tais traços contêm em si o mundo da casa-grande e senzala redivivos até hoje. Nem todos são totalmente originários daí, mas se modificaram com a urbanização. Observe-se no entanto a ausência de identificações de classe nessa formação de identidade brasileira (dominantes/dominados ou exploradores/explorados). Ao contrário, o brasileiro aparece como a pessoa isolada que não pode confiar em nada e ninguém. O Estado, a empresa, o sindicato, os grupos políticos aparecem como uma ameaça absoluta de exploração ou perda em autodeterminação. Daí o asco que o “liberal” brasileiro tem de toda associação civil ou movimento social de base efetivamente democrática e popular.
Outros elementos citados acima foram combinados aos modos capitalistas mais modernos de exploração e dominação por serem úteis ao seu funcionamento. Não são “resquícios” de um passado superado, mas elementos que são recriados pelo sistema atual. Alguns estão em desaparecimento, outros tornaram-se estereótipos que dificilmente encontram-se na realidade tal como descritos; outros ainda mantêm-se totalmente alterados, camuflados ou estão em processo de superação, junto com a sociedade que as originou, que, afinal, se industrializou e se globalizou através do mercado mundial e das pressões civilizatórias, através do pertencimento à comunidade das nações.
O liberalismo autoritário: a luta de morte contra os direitos do cidadão e o ódio à política

Mas, em geral, é preciso sublinhar que tais elementos naturais e sociais ajudaram a construir uma cultura ainda hoje profundamente autoritária, que despreza ou não leva a sério valores modernos como igualdade, liberdade, solidariedade, democracia, autonomia, respeito ao outro e tolerância ao diverso, a busca da superação e o progresso coletivos – o que implicaria em um projeto político ao nível do Estado moderno –, ou seja, a abertura à história e à transformação histórica. Daí o ódio à política e ao Estado que nossos liberais conservadores e ultraprivatistas nutrem, pois se imaginam ainda hoje “roubados” pela interferência do poder público sobre o seu “latifúndio” e a sua “escravaria”. O mundo se restringe à sua casa e à sua empresa. Amam as suas prerrogativas etnocêntricas de classe, cor e gênero, e lutam pelo extermínio real e simbólico do que difere disso.
No Brasil, liberais são comumente antiliberais: conservadores, machistas, obscurantistas, anti-intelectualistas, apoiadores de golpes de Estado. Continuamos a admitir a democracia da porteira para fora, “pra inglês ver”, mas nunca da porteira para dentro. Não é por acaso que temos milhares de trabalhadores escravos e semiescravos ainda hoje. Ou que a polícia torture e mate impunemente como em nenhum outro país. Que a política de cotas e bolsas seja execrada por uma parte reacionária e imbecilizada das camadas médias. Que a legislação ambiental exista e até seja rigorosa, mas a fiscalização e as multas as mais leves possíveis. Ou que a corrupção e a sonegação atinjam níveis ionosféricos e fiquem impunes caso venham da elite tradicional e conservadora.
Noutras palavras, o que temos é o nosso liberalismo perverso e inconsciente: as leis do trabalho, do ambiente e a justiça propriamente dita, para ficar em três campos essenciais, são e não são “liberais” e “modernos”, são e não são cumpridos, pois não passam de discurso ostentatório, puro formalismo vazio, mera ideologia de segunda mão. Daí o destino desse modelo: uma formação nacional abortada. Um país dependente, corrompido e arruinado que envergonha a própria classe dirigente mundo afora. O que nos distingue da ideologia liberal do Centro, que pode manter ainda uma aparência sólida, um conjunto mais ou menos consolidado de instituições, direitos e garantias sociais.
Na verdade, seria mais correto dizer que hoje o Brasil fornece-nos uma identidade híbrida e mutante, que mistura dois ou três registros: a) o registro dual de casa-grande e senzala, em que o rei ou os amigos do rei dão as cartas; b) o registro propriamente moderno, o do indivíduo liberal (conectado aos semelhantes por via do mercado e regulado pelas leis impessoais da Constituição), embora contaminado pelo primeiro registro da liberdade de dominar e explorar até o limite da impunidade; c) o registro de uma subjetividade crítica em formação (identidades pós-individualistas e pós-materialistas, móveis, abertas, incluindo as de classe etc.).
No entanto, o peso do passado permanece. Daí por que o Brasil é conhecido por uma série de modernizações conservadoras, que dificilmente alteram as estruturas fundamentais, mas apenas a quantidade de riqueza explorada e a parte do butim que cabe aos vencedores das classes possuidoras. Daí por que o grande sonho “liberal” de nossos jovens “empreendedores” seja destruir direitos sociais, ou leis, ou taxações que poderiam elevar o nível social ao de uma sociedade um pouco mais livre e igual. Em vez disso, prevalece a luta de morte num campo de zumbis do trabalho e da concorrência, que gozam de sua própria falta de vida, liberdade e conhecimento histórico. Uma ideologia de crise, reativa, de afirmação selvagem e violenta de si, amiúde sociopata. Nossos liberais, disse Paulo Emílio, são meros “aristocratas do nada”.
Sem ilusões, ao fim e ao cabo: essa identidade canalha e perversa de nossos liberais de meia pataca não é natural, não é um destino, pois pode ser socialmente superada. Mas isso não depende apenas da vontade e da ação de indivíduos isolados, mas de uma ampla transformação social, que ultrapasse também o seu modelo original, haja vista a crise global da sociedade capitalista dita “neoliberal”. Pois lá como cá, na falta da lei, corroída pelo turbocapitalismo da acumulação digital e flexível, a massa foge para o conservadorismo e “deseja” seus líderes autoritários e protofascistas (EUA, Grécia, Hungria, Ucrânia, Turquia, Egito, Tailândia, Filipinas, dentre outros exemplos proeminentes no mundo). Uma outra identidade, realmente plural e igualitária, só será atingida por meio de uma forte desidentificação com nossas origens nacionais e globais.
Ilustrações de Grayson Castro.