Quando passamos pelo processo da queda da Presidente Dilma, em 2016, uma questão se tornou muito latente e passou a ser um esforço tremendo de todos os intelectuais e cientistas sociais brasileiros: explicar por que aquilo tudo havia sido mais um golpe contra as democracias. De lá pra cá, muita coisa se passou e dois governos bem controversos passaram a administrar o país; o que, se não foi o suficiente para convencer que o impeachment se tratou de um golpe, era suficiente para entender que o processo foi de todo estranho e pouco democrático. Afinal, a mudança de governo, caso fosse de fato resultado de vontade popular e voltada a atender os interesses nacionais, não traria como resultado a chegada de administrações tão controversas.

A imagem que temos de golpes de Estado é a de um determinado “clichê” que lembra tanques nas ruas, militares invadindo prédios, milhares de presos políticos; porém, tais cenários ocorrem mais após o estabelecimento do regime do que durante a aplicação do seu golpe. O Brasil sofreu pelo menos 5 mudanças abruptas de regime que poderiam ser consideradas golpes de Estado: 1889, 1930, 1937, 1945 e 1964. Com exceção da Revolução de 1930 – e mais especialmente seu desdobramento em 1932 – esses processos em um sentido mais imediato não contaram com esse roteiro que normalmente fica no imaginário que descrevemos acima. Determinados grupos sociais permanecem na posição que estão, alguns elementos do governo são preservados, e as coisas vão acontecendo de maneira mais ou menos sorrateira, sempre se revestindo de institucionalidade e legitimidade.
Esses processos foram se aperfeiçoando e cada vez menos essas mudanças de regime se traduzem em tiro, porrada e bomba. Imediatamente tudo tenta se transcorrer dentro dos limites da lei, por mais que a lei seja esticada, repuxada, deformada, amordaçada, espancada até ela falar o que se deseja ouvir. Mais importante que a forma imediata em que o governo é afastado, é entender como foi possível que as leis e instituições do país foram sendo transformadas a ponto de permitir um golpe. Esta é a legítima premissa que o livro Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que se tornou muito popular recentemente, pretende explicar.
Afinal, é uma pauta muito atual. Em vários cantos do globo, líderes mundiais com discursos bizarros passaram a assumir o poder e tratar todo o processo político e eleitoral com desdém: nos próprios Estados Unidos, terra dos autores do livro, na Turquia, nas Filipinas, na Rússia, na Hungria. E eles desejam fazer um alerta direcionado aos estadunidenses para impedir que o desenvolvimento de um regime não democrático se consolide nos EUA. Para tanto, eles passam a apontar determinados exemplos históricos que possam, de certa forma, fornecer exemplos e lições, tal como Mussolini, Hitler e Hugo Chávez.
Como os autores conseguiram fazer uma trajetória iniciada nos regimes nazi-fascistas, começando na Itália em 1920 e terminando nos anos 2000 na Venezuela? Bom, essa é uma pergunta complicada de responder e que em nenhum momento os autores o fazem, mas passam o primeiro terço do livro citando como uma determinada situação que ameaça os regimes democráticos ocorreu na Itália, na Alemanha e na Venezuela. Por mais autoritário que acreditem ser o regime venezuelano, é preciso muita força de vontade para compará-lo aos regimes fascistas dos anos 1930.
Mesmo sendo regimes identificados à esquerda em um e à extrema-direita em outro, não há comparação em vários aspectos; não há recorte étnico em possíveis medidas autoritárias de Chávez ou Maduro, para citar o exemplo mais óbvio. Na Itália e na Alemanha, os nazifascistas perseguiram minorias, cassaram sua cidadania e retiraram sua humanidade, cenário que não se repete na Venezuela. Em nosso vizinho também não há milícias paramilitares atacando pessoas livremente na rua, como também não há interesse em conquistar outros países, territórios ou iniciar guerras mundiais – medidas que desde o início eram o objetivo dos regimes de Hitler e Mussolini.
Bom, talvez ao ler este último parágrafo, caso você não tenha lido o livro, esteja acreditando que estou forçando a mão nessas comparações. E estou mesmo, mas essa é uma saia justa que os autores precisam sair, não eu; estou levando ao limite uma proposta que os próprios apresentam repetidas vezes na obra:
Se o povo abraça valores democráticos, a democracia estará salva. Se o povo está aberto a apelos autoritários, então, mais cedo ou mais tarde, a democracia vai ter problemas.
Essa visão está errada. Ela espera demais da democracia – que “o povo” possa dar forma, como lhe aprouver, ao tipo de governo que possui. É difícil encontrar qualquer evidência de apoio majoritário ao autoritarismo na Alemanha e na Itália nos anos 1920. Antes de os nazistas e os fascistas tomarem o poder, menos de 2% da população eram membros de partidos, e nenhum partido alcançara nada sequer próximo de uma maioria de votos em eleições livres e justas. Ao contrário, maiorias eleitorais sólidas se opuseram a Hitler e a Mussolini – antes de os dois homens alcançarem o poder com o apoio de insiders do mundo político cegos para o perigo de suas ambições.
Hugo Chávez foi eleito por uma maioria de eleitores, mas há pouca evidência de que a Venezuela estivesse à procura de um ditador. (pág. 24)
Uma questão moral e pessoal
No final da citação, que busca demonstrar que os ditadores podem chegar de forma sorrateira ao poder, eles apontam que Hitler e Mussolini alcançaram o poder “com o apoio de insiders do mundo político cegos para o perigo de suas ambições.” Essa afirmação é problemática e representa bem um grande problema de toda a linha argumentativa do livro; ela está no capítulo 1 – Alianças Fatídicas, que mostram como “cada um deles [ditadores] ascendeu ao poder porque políticos do establishment negligenciaram os sinais de alerta” (p. 24), o que já é um profundo equívoco. Afinal, dá a entender que o establishment não compactuou em momento algum com as bandeiras levantadas por movimentos autoritários, mas estavam “cegos” para elas. Posteriormente afirmam que “em algumas democracias, porém, líderes políticos prestam atenção aos sinais e tomam medidas para garantir que os autoritários fiquem à margem, longe dos centros de poder” (p. 25).
Vejamos; o quanto o político autoritário vai mais ou menos longe no governo depende então de mera “atenção” dos demais políticos e da sociedade. E para nos ajudar a não “moscarmos” se estivermos nessa situação, os autores apresentam um quadro com 4 pontos principais de como identificar um político de aspirações autoritárias – que aliás, não é de autoria dos próprios. Esse quadro (págs. 27 e 28) talvez seja a parte menos pior do livro, realmente pode ajudar o eleitor ou cidadão a observar certas coisas e normalmente é o que desta obra é usado como uma referência por pessoas e meios progressistas.

Inicialmente, em uma típica ótica estadunidense de classificar os latinos como selvagens, apontam como quase todos os últimos presidentes da América Latina nessa tabela, incluindo Evo Morales e Rafael Correa, seriam expoentes das violações do quadro – hoje, com ambos exilados, vítimas de golpes, é possível termos uma boa noção do quão equivocada e ideológica é a análise deste livro.
Em seguida, eles seguem em vários momentos utilizando essas balizas para apontar ameaças à democracia de vários políticos, em especial Donald Trump. Todo o capítulo 8 é dedicado a isso: “Trump contra as grades de proteção”. Eles demonstraram como Trump deslegitima oponentes ao insinuar que Obama não era estadunidense de nascimento; como tentou controlar as agências policiais e jurídicas (p. 164); tentou interferir com negócios de conglomerados de mídia (p. 166); e encoraja a violência dizendo que queria Hillary Clinton morta ou presa – são todos alertas válidos de um ponto de vista eleitoral e pessoal para cada pessoa que leia a obra.
Entretanto isso não explica nada. Mesmo em todo esse capítulo “anti-Trump” os alertas são feitos apenas referentes ao Presidente Trump, não ao governo Trump. Ao citar como ele tentou se vingar de agentes públicos que investigavam sua ligação com políticos russos (págs. 162-165) tudo ganha uma ótica pessoal; ele que é uma pessoa truculenta, vingativa, que não pertence àquele mundo. Como se a crise política que os EUA enfrentam fosse uma questão de personalidade dos envolvidos.
O livro até passa um bom tempo descrevendo como houve uma onda de rebaixamento político dos partidos no país, em especial do Partido Republicano, mas sempre com a escala pessoal: a trajetória de Newt Gingrich (pag. 135), que criou o seu grupinho de senadores conhecidos por professarem baixarias, ou de como Tom DeLay liderou um redesenho dos distritos eleitorais do Texas (pág. 141) de modo a garantir o controle de seu partido das câmaras estaduais. Tudo fica explicado como uma questão de ambição ou estratégia pessoal daqueles personagens.
Em um capítulo dedicado às “grades de proteção da democracia”, uma dessas proteções é o “comedimento” dos governantes, já outra é a “reserva institucional”, que seria uma espécie de resiliência de todas as partes envolvidas em não abusar das regras do jogo. Num trecho em especial, os autores usam as duas expressões em conjunto:
“Normas de reserva institucional são especialmente importantes em democracias presidencialistas. […] governos divididos podem facilmente levar a impasses, disfunções e crises constitucionais. Presidentes sem comedimento ou controle podem aparelhar a Suprema Corte, alterando sua composição, ou contornar o Congresso, governando por decretos. E Congressos sem comedimento podem bloquear todos os movimentos do presidente, ameaçando lançar o país no caos […]”
Ao falar de presidentes sem controle, parlamentares sem comedimento, da necessidade dos demais políticos de prestar atenção aos sinais, ou não ficarem cegos aos avanços dos autoritários, apontam para duas narrativas nas entrelinhas: em primeiro lugar que também é uma questão de ação individual de todos os envolvidos, tanto dos aspirantes a ditador quanto dos demais políticos: se um fosse menos ambicioso e os demais mais espertos, nada de mal teria acontecido. Em segundo, e principal, que não há uma ligação forte entre os políticos autoritários e os grupos que os apoiam, há apenas uma convergência pontual ou uma manipulação de figuras populares que saem fora do controle.
Em outro trecho, eles dizem como “autocratas eleitos também buscam enfraquecer líderes que disponham de meios para financiar a oposição” (pág. 81). Seguem, então, contando tristíssimas histórias de como magnatas russos foram seguidamente alvos de ataques – políticos e físicos – por parte do Governo Putin; também a de um bilionário turco que queria criar seu partido e acabou sendo denunciado por crimes fiscais. Os autores argumentam que após episódios assim “outros empreendedores concluem que é mais sensato se retirar de uma vez por todas da política” (pág. 83).
Será que nenhum desses empreendedores, industriais, religiosos, militares, ou até mesmo sindicalistas e líderes de movimentos sociais não estavam de acordo com as políticas realizadas pelos ditadores? Com certeza poderiam estar, e se em seus governos autoritários estavam atendendo a demanda desses grupos, por que eles deveriam então parar de apoiá-los? Ao excluir os interesses políticos, sociais e econômicos por trás dessas ações (ou falta delas), a única resposta é porque seria “sensato”, ou moralmente correto não ser autoritário, e seria virtuoso apoiar a democracia. É uma situação que estamos vivenciando claramente no Brasil, enquanto a mesma mídia empresarial ataca diretamente Bolsonaro como pessoa ou ainda em determinadas práticas antidemocráticas, ao mesmo tempo dá espaço para seus ministros ou parlamentares da base aliada do governo, tratando-os com naturalidade. Discutindo seus programas e propostas com clara concordância.
Qual seria então o problema aqui, se nos guiarmos por “Por que as democracias morrem?” A família Marinho está cega para os perigos do Bolsonaro? Rodrigo Maia que não está atento à situação? Acredito que todos sabemos que não é bem por aí.
A miopia
Um momento particularmente patético do livro é quando eles descrevem um determinado episódio do governo Franklin D. Roosevelt: o presidente desejava pressionar a suprema corte norte-americana, que constantemente vinha bloqueando determinadas políticas referentes ao New Deal. Ele então elaborou uma proposta, dentro dos marcos legais no país, que permitia que fossem nomeados mais juízes para a corte. Para cada integrante acima de 70 anos, o presidente poderia nomear mais 6 juízes como uma espécie de “reserva” para próximas aposentadorias, garantindo, assim, maioria aliada no judiciário ao aumentar o total de membros. Após apresentar a manobra, que poderia passar nas duas casas pela maioria conquistada e pelo massivo apoio popular de FDR, se seguiu, nas palavras dos autores:
“Num movimento que foi descrito como “recuo de mestre” para preservar sua integridade, a Suprema Corte, antes opositora do New Deal, rapidamente reverteu uma série de decisões suas. Na primavera de 1937, a corte decidiu numa rápida sucessão em favor de vários pontos do New Deal […] No auge da sua popularidade e poder, o presidente se empenhou duramente contra os limites à sua autoridade constitucional e foi bloqueado.” (pág. 123)
Parece que eles finalmente estão percebendo o que é política nessa parte. Eles descrevem todo esse processo de forma comovente como uma espécie de balé democrático, um avanço e um recuo para proteger a democracia, ou nos termos deles, um “sistema de freios e contrapesos” que teria impedido, nas sombras constitucionais, sem estar escrito, os EUA de caírem num regime ditatorial.
Se Roosevelt avançou sobre a corte e a corte recuou, e ele venceu a queda de braço com folgas, isso pouco tem a ver com a democracia em abstrato, em conceito. Isso foi simplesmente política. Os juízes, ao que tudo indica, conservadores e contrários aos programas do governo, não aprovaram por espírito democrático ou por “boa moral”, mas por perceberem que o presidente e seu programa tinham muito mais força que eles próprios naquele momento. A democracia se mostrou no momento em que os juízes entenderam que eles representavam uma minoria da sociedade estadunidense e recuaram.
A figura de Franklin Roosevelt é um nó na cabeça dos autores por ele ser o presidente que mais tempo ficou no cargo. Ao discutir o tema, começam dizendo como o limite de dois mandatos presidenciais foi algo originalmente não escrito em nenhuma legislação dos Estados Unidos, foi uma tradição seguida após a postura pessoal de Thomas Jefferson, que por conta própria, quis se aposentar e achou que seus 8 anos à frente do governo foram o tempo ideal. Ainda, em 1892, por livre iniciativa do Partido Democrata, Grover Cleveland não foi indicado a mais uma disputa eleitoral pelo terceiro mandato para preservar a democracia e respeitar uma “lei não escrita” (pág. 102).
A forma como encaram o terceiro mandato de FDR é bastante reveladora, porque ele isoladamente é tratado como uma ameaça da democracia ao infringir uma das tais regras não escritas americanas, uma “transgressão que desencadeou a aprovação da 22ª emenda” (pág. 102). Mas, vejamos, este fato de apenas uma única vez um presidente americano ter governado por 3 mandatos consecutivos é uma ameaça à democracia ou um sintoma de como ela já vem sendo colocada em risco? No mundo, em 1930, no auge do fascismo após a maior crise econômica até então, isto foi um problema de “falta de normas de reserva institucional” ou falta de “comedimento” do presidente?
Numa situação análoga para nós: as eleições de 2018 no Brasil foram seriamente prejudicadas pela candidatura e posterior prisão de Lula. Também seria a única vez, além de Vargas, que um presidente ocuparia um terceiro mandato. Sua provável eleição significaria uma ameaça à democracia brasileira e não o afastamento da presidente Dilma em 2016 ou de toda a crise política que só aumentou no país desde então?
Se há uma constante em toda a obra, decorrente da visão moral e pessoal dos autores em uma análise, é uma miopia terrível de todos os desafios e problemas que a democracia sofre em todos os cantos do mundo. No trecho destacado um pouco mais acima, sobre os avanços de Putin contra os bilionários russos, eles disseram que “a mensagem [de Putin] para os oligarcas foi clara: fiquem longe da política” (pág. 81). É um bom capricho do destino, o uso dessas palavras – esses magnatas russos, que enriqueceram após o desmantelamento da URSS, são chamados de oligarcas no vocabulário político do Leste Europeu – pois então Putin representaria uma ameaça à democracia por atentar contra a oligarquia? Se há um, um dos conteúdos mais básicos que temos de história política desde o ensino básico é que o surgimento da democracia ateniense na antiguidade foi justamente uma resposta para combater a oligarquia.
A intenção aqui não é apresentar Putin como democrático, não há dúvidas do autoritarismo do presidente russo. Entretanto, é extremamente míope apontar o ataque a oligarcas como uma ameaça à democracia. Será que a ordem não seria inversa? Será que não fora a forma que ocorreu o desmembramento da URSS e o fato da privatização relâmpago da economia russa gerar indivíduos com tamanha riqueza e poder (naquele que havia sido o maior país já constituído no planeta) que gerou uma crise democrática? Exemplos como esses são infinitos em todo o livro, as crises democráticas têm fim em si mesmas, não fazem parte de um contexto maior.
A dicotomia entre os insiders e outsiders – termos bastante usados no livro também – da política também é uma constante no livro. Os insiders seriam os políticos de carreira e os outsiders, os candidatos “avulsos” que surgem, cujo símbolo máximo é o próprio Donald Trump. A nomenclatura faz sentido e entendemos do que se trata, mas justamente o que se esperaria do livro seria uma análise desses termos, não os comprar totalmente. Porque a questão é que os supostos “outsiders” raramente o são; esta deveria ser a crítica.

Em nossa realidade, Bolsonaro foi parlamentar por quase 30 anos na cúpula do PP, partido Malufista; Dória, eleito com essa pecha em São Paulo, é filho de políticos de carreira e frequentemente integrava círculos de políticos e empresários no Estado. O mesmo nos exemplos históricos extremos: Mussolini era um importante líder socialista antes de virar a casaca, assim como Hitler havia participado do golpe da Cervejaria, em 1923, com Erich Ludendorff, comandante militar do Império Alemão (e ditador de facto) durante a Primeira Guerra Mundial. Se o livro se propõe a nos abrir os olhos quanto aos “outsiders”, o melhor caminho seria mostrar que eles não são tão alienígenas assim.
Em dois capítulos, “Os guardiões da América” e “A grande abdicação republicana”, os autores descrevem com afinco como o sistema democrático americano veio lentamente se decompondo. Quando elas precisaram confrontar a candidatura de Trump dentro do Partido Republicano, as normas democráticas “já não eram mais capazes de impedi-la. […] as chances de um outsider extremista sequestrar a nomeação para concorrer à presidência eram maiores do que nunca” (pág. 56). E quando narram o processo, apontam os outros candidatos nas prévias, e colocando como principal rival Jeb Bush, irmão do ex-presidente (e filho de outro), dono de um currículo invejável (pág. 54). Então este seria, aparentemente, um “bom candidato” que não ameaçaria a democracia.
“Embora muitos fatores tenham contribuído para o sucesso político atordoante de Trump, sua ascensão à Presidência é, em boa medida, uma história de guarda ineficaz dos portões” (pág. 56). Um exemplo de como na ótica dos autores, as crises políticas têm um fim em si mesmo. Nenhum outro motivo, seja econômico, social, cultural, nacional ou internacional, tem importância para explicar a chegada do atual presidente ao poder, exceto a própria crise política: uma “guarda ineficaz dos portões”. Essa “guarda” seria a defesa da democracia, e seus guardiões seriam os dois principais partidos estadunidenses e suas prévias, assim como também o colégio eleitoral, isto é, o sistema de eleição indireta que vigora nos EUA (pág. 42). Eles teriam como função impedir que demagogos ou figuras populares, mas despreparadas, cheguem ao poder, pois um “excesso de confiança na ‘vontade popular’ também pode ser perigoso, pois arrisca levar à eleição de um demagogo que ameaça a própria democracia” (pág. 42). Além de, ironicamente, o discurso ser perigosamente antidemocrático, é extremamente míope.
Os autores lembram com nostalgia o tempo em que os candidatos presidenciais eram selecionados em reuniões restritas dentro dos partidos, “salas enfumaçadas”, como algo relativamente virtuoso (pág. 40). Estranhamente ignoram o México em toda a obra. O país vizinho por quase todo o século XX só viu eleições para formalizar os candidatos já indicados na cúpula do PRI, seria um excelente exemplo de democracia apenas nominal, natimorta. Mas talvez, pela virtuosidade por eles em processos eleitorais decididos por indicações, a prática mexicana não tenha sido citada por ser um exemplo de democracia saudável pelos autores.
Quando vão discutir sobre a ditadura pinochetista, lamentam que ela ocorreu em um país antes tão democrático, onde “não havia discussão, dizia-se, que não pudesse ser resolvida com uma garrafa de cabernet chileno” (pág. 106). Para além da torpeza dessa análise, é grave como não percebem que é justamente o fato de que os partidos e políticos se misturarem na visão da população e tomarem decisões mais próximas dos seus adversários, que coloca em xeque a democracia representativa aos olhos dos cidadãos.

Se há uma imagem que rapidamente encontra muito eco na indignação popular, é justamente a de políticos confraternizando em aeroportos, restaurantes, ou no estrangeiro. Por toda a obra os autores lamentam como: “Ao longo dos últimos 25 anos, democratas e republicanos se tornaram muito mais do que apenas dois partidos competidores, separados em campos liberal e conservador. Seus eleitores encontram-se hoje profundamente divididos por raça, religião, geografia e mesmo modo de vida.” (pág. 153), sem, no entanto, ponderarem sobre o sucesso eleitoral dos candidatos que atendem os anseios de tais divisões.
Em O ódio à democracia, de Jacques Rancière, o autor aponta que essa crise mundial da democracia burguesa é um movimento duplo: de um lado as classes dominantes acham que a democracia está democrática demais e perde-se o controle – o que casa muito bem com a interpretação destes autores – e as classes dominadas acreditam que a democracia não é democrática o suficiente. É uma conclusão bem mais plausível: a população não crê mais o suficiente na democracia da forma como conhecemos – eleições a cada tantos anos, vereadores, deputados, juízes, presidentes – então ela vai atrás de candidatos que, no discurso, se levantem contra ela.
Afinal, democracia representativa burguesa não é sinônimo de democracia; se os cidadãos entendem que o sistema eleitoral e representativo não é democrático o suficiente – ou seja, não reflete suas opiniões, não atende suas demandas, não os ouve – eles vão trabalhar, conscientemente ou não, para que ele mude ou que seja destruído e se torne mais democrático em um sentido mais amplo.
E precisamente esse seria um bom trabalho para explicar como as democracias morrem: morrem porque estão apegadas a um jogo viciado de parlamentos, cargos e burocracia que excluem das decisões a maioria da população. Ao mesmo tempo em que os sistemas políticos tais como conhecemos não estão sabendo se reformular, se ampliar, se democratizar; ao contrário, a sensação é que estão mais restritos pois mais pessoas têm acesso a informação ou cursos superiores, enquanto a proporção de envolvimento é a mesma de 30 anos atrás: a cada tantos anos elegemos os mesmos 500 e tantos parlamentares, por exemplo.
A questão principal seria denunciar que os tais “outsiders” não o são, de forma alguma; e seus discursos são apenas demagogia nesse sentido. Denunciar que não querem democratizar o sistema, e sim o inverso, trabalham para garantir a restrição. Mas esse trabalho nunca poderá ser feito por análises tais como as deste livro, que, no fundo, têm a nostalgia de tempos menos democráticos em que o voto censitário era a regra.
Referência
Levitsky, Steven; Ziblatt, Daniel — Como as Democracias Morrem (PDF)