“Minha voz não era popular. Os mercados financeiros vinham se expandindo, a inovação avançava a passos largos e o país estava próspero. A indústria de serviços financeiros argumentava que os mercados provaram ser autorregulados e que o papel do governo na fiscalização e regulação do mercado devia ser reduzido ou eliminado. Todos nós já pagamos um alto preço por esse argumento falacioso.”
Brooksley Born, ex-presidente da Commodity Futures Trading Comission, a única voz feminina na comissão que aprovou a lei Gramm-Leach-Bliley (2009).[1]
A Crise de 2008 é uma crise provocada por uma ideologia que prega serem os mercados os melhores reguladores da sociedade. Segundos seus militantes, a democracia e o direitos sociais são empecilhos que impossibilitam o funcionamento ótimo do mercado, o que prejudicaria toda a sociedade. Eles garantem, com a mesma convicção de um terraplanista, que os mercados não precisam de regulação, porque são eficientes em darem conta de si próprios, criando assim as condições para o melhor dos mundos possíveis poder existir, ganhando assim toda a sociedade. Essa ideologia, que possui características de uma religião, chama-se neoliberalismo.
O filósofo Michael Sandel nos dá exemplos práticos do que esta defesa fanática pela submissão de todas as esferas da vida à lógica do mercado têm promovido. Desde pagamento por melhores lugares nas prisões, barrigas de aluguel, cobaias humanas em testes de laboratório, tropas mercenárias em conflitos na Somália e Afeganistão, comércio de sangue, mercados de futuro de terrorismo.[2] Nada escapa, tudo se torna quantificável para venda.
O mais importante a se frisar é que a Crise de 2008 não foi um acidente de percurso na economia-mundo capitalista, porém, parte inerente do próprio percurso. A própria lógica dos mercados a tornaram inevitável. E o mais alarmante: o mundo não a superou. As devastas consequências dos mercados absolutos deveriam causar pesar e reflexão entre os neoliberais. Mas não. Diante do risco de caírem no ostracismo, seus patrocinadores, que se encontram em sua maioria no mercado financeiro, redobraram seus lóbis e recomeçaram uma intensa campanha para a continuidade dessa ideologia que se vende como ciência econômica.
A Crise de 2008 não foi culpa do Estado
Os neoliberais buscam alguns caminhos para livrarem sua ideologia da responsabilidade sobre a Crise de 2008. Um dos mais insistidos consiste em dizer que a culpa é do Estado, por ser garantidor das empresas de capital aberto Fannie Mae e a Freddie Mac, o que causaria “distorções no mercado”. De fato o governo teve que intervir nessas empresas, a parte que os neoliberais omitem é que isso foi feito apenas após o estouro da crise de 2008, para evitar seu aprofundamento. Antes disso, o governo havia deixado de ser garantidor dessas empresas há mais de 55 anos, ou seja, não houve intervenção governamental alguma há décadas, a crise ocorreu enquanto tais empresas estavam totalmente sob leis do “livre mercado”.
Com o fim das políticas sociais de Habitação pelo governo Ronald Reagan, gerando um colossal contingente de estadunidenses sem teto, o governo Bill Clinton tentou minimizar essa crise habitacional aplicando linhas de crédito para a população de média renda, em vez de retomar as políticas habitacionais anteriores suspensas por Reagan.[3] Ainda enfrentou, a partir de 1995, um pesado ataque do partido Republicano no congresso para eliminar a agência federal do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano (HUD). O governo reagiu cedendo aos republicanos parcialmente, substituindo os subsídios e planos de habitação pela concessão de vouchers portáteis, um tipo de vale-crédito para os beneficiários se arranjarem com empresas privadas. Outra capitulação se deu em 1999, quando Bill Clinton assinou a Lei de Modernização dos Serviços Financeiros, uma desregulamentação que permitia que bancos comerciais e instituições financeiras estivessem livres para se unir e formarem grandes corporações financeiras.
Contudo, entre 1999 e 2003, as empresas Fannie Mae e Freddie Mac foram alvo de auditorias implacáveis[4], depois dos escândalos das PontoCom com a maquiagem e trapaça no balanço das empresas privadas. Então, até 2005, não tiveram atuação de peso diretamente nos “empréstimos duvidosos”. As agências de classificação de risco privadas lhes atribuíam o mesmo peso de garantia dos títulos de tesouro dos EUA.
Aqui está o plano de fundo: a Fannie Mae – a Federal National Mortgage Association – foi criada em 1930 para facilitar a compra da casa própria por meio do mercado bancário de hipotecas, liberando dinheiro que poderia ser usado para fazer novos empréstimos. Ambas passaram a ser as maiores garantidoras de parte do volume hipotecário nos EUA nos anos 90, em resposta aos escândalos contábeis nas empresas, em um momento em que essa prática se revelou ampla no grande mercado.[5]
Agentes do mercado e reguladores reduziram a amplitude da carteira de empréstimo das duas companhias e, após rigorosas auditorias, passaram a ser mais rígidos nos critérios. As duas estavam submetidas a exigências legais de só comprarem hipotecas para mutuários que efetuaram pagamentos mínimos e com rendas cuidadosamente documentadas. Assim, adquiriam lotes hipotecários nos mercados de hipotecas secundárias, ampliando seu leque de créditos para compradores que atendessem as exigências, usando as suas posições para tentar expandir aos cidadãos de menor renda. Não podiam entrar nos negócios subprime (os instrumentos de crédito de alto risco), posto que mutuários de renda média não podiam sustentar garantias que pudessem ser negociadas na bolsa (principalmente as hipotecas).[6]
Barry Riholtiz, um chefe de um importante escritório financeiro, considerado um dos mais importantes jornalistas econômicos dos Estados Unidos, colunista do Bloomberg e do Washington Post, tendo nada de “esquerdista”, ofereceu US$100.000,00 para quem provasse que ele estava errado acerca da loucura que é culpar as Fannie e Freddie pela supercrise.[7]
Riholtiz apresenta os pontos básicos em que se demonstra a irracionalidade deste argumento fundamentalista, ao pontuar que a subscrição para o despontar do boom dos subprime está nos “bancos-sombra”, que não estão abrangidos pela Community Reinvestment Act, como a Fannie e Freddie estão. Esses bancos nunca foram regulamentados. Aponta também que, até 2005, o mercado de subprimes é Wall Street, e não essas duas empresas.
O que motivou as instituições financeiras a centrar fogo nos subprimes foi a amplitude dos lucros, não tendo relação alguma com medidas governamentais (considerando a predominância do período Bush, de direita). A narrativa daqueles que culpam o Estado pela crise de 2008 enfraquece ainda mais quando, em 2005, as Government Sponsored Enterprises (GSEs), empresas patrocinadas pelo poder público (criadas pelo Congresso) para facilitar o acesso ao crédito, não podiam adquirir papéis de hipotecas duvidosas. A quota nelas do mercado de hipotecas mais inseguras caía entre 2004 a 2007, quando experimentou uma alta, devido à farra do retorno em relação ao risco. Já emprestadoras privadas, como a Countrywide, operavam no mercado subprime. Tudo avalizado por econometristas confiantes na suposta eficiência dos mercados.
O que os lobistas do darwinismo social de livre mercado podem dizer da Europa, sem Fannie e Freddie, mas igualmente necessitada da estatização em massa de bancos e recuperação do sistema financeiro? Como culpar o Estado, se é flagrante que a crise foi provocada por empresas privadas se valendo da desregulação?[8]
Diante desses fatos, a justificativa oficial dos crentes na autorregulação dos mercados cai por terra, não passa de um pretexto para que não assumam a responsabilidade pelas consequências do que impuseram como ideal. É uma narrativa insustentável e, portanto, não pode ser levada a sério.
Quando o “livre mercado” especula em cima do sonho da casa própria
Nos EUA, foi criado um instrumento institucional chamado Community Reinvestment Act (CRA), para evitar que bancos discriminassem moradores de bairros periféricos na concessão de créditos. Para os crentes na auto-regulação do mercado, o CRA não passa de uma intervenção que impacta em seu equilíbrio, principalmente no mercado financeiro (com o qual eles estão mais comprometidos), mesmo que sua intenção seja ajudar os mais pobres a adquirirem sua casa própria. Desta forma, dizem que esse mecanismo governamental, ao “forçar“ empréstimos hipotecários a juros menores do que o praticado no mercado, provocou uma distorção que levou à crise. Porém, mais uma vez, não existe evidência alguma que corrobore essa percepção, por um simples motivo: a lei já estava em vigor desde 1977, trinta anos antes. Durante todo esse tempo não fez estourar “bolha” alguma.
Lembrando que, como já citado, esse financiamento habitacional popular ainda se enfraqueceu durante o governo plutocrata de Ronald Reagan. Este cortou os programas habitacionais públicos, elevando o número de desabrigados.[9] Soma-se ainda o fato de que esse sistema só se aplicava a bancos depositários, os quais são uma fração mínima do bancos que faziam “empréstimos duvidosos” e que provocaram a crise de 2008. Anos depois da mudança dessa política por Reagan, uma nova legislação de inspiração neoliberal foi aplicada: a Lei de Controle Monetário e de Desregulamentação de Instituições Depositárias[10]. Esta lei pró mercado formalizou e legalizou a agiotagem a níveis de máfia italiana, tendo um peso real na crise de 2008.
Os reais fatores que provocaram a bolha hipotecária não possuem nenhuma relação com políticas sociais, mas com a busca inexorável pelo lucro. A Obrigação de Dívida Colateralizada (um ativo que é dado como garantia caso o empréstimo não seja pago e o emprestador, por sua vez, vende a terceiros o direito de receber os juros e o retorno do empréstimo em algum momento no futuro, passando a dívida para frente) e o Credit Default Swaps (CDS), não são instrumentos da Community Reinvestment Act.
Tais novos instrumentos foram, na verdade, criados na transição de século por aqueles que acreditam em dogmas dos mercados eficientes que se autorregulam, nos dogmas das alocações racionais dos agentes (vistos como átomos isolados) e dos preços refletindo todas as informações relevantes, tendendo ao equilíbrio. Foram esses instrumentos, baseados nesses dogmas, que se agrupavam e dividiam as hipotecas em parcelas qualitativas, para depois as vender como produtos separados, permitindo que os bancos contratassem crédito sem se preocuparem com a situação econômica dos hipotecários.
Pouco importa aos bancos a origem ou condição de seus clientes. Estes apenas deveriam atender a precificação dos custos adicionais dos riscos em um amplo agrupamento estratificado hierarquicamente. A princípio de qualidade mais duvidosa, mas na média geral dos títulos, o risco de inadimplência ficaria percentualmente baixo. Não se saberia mais quem é quem. Só variava o diferencial astronômico de juros para cada categoria de qualidade, o que fez com que, no final das contas, os títulos podres ficassem mais atrativos para os Fundos de Hedge (o prêmio de risco era muito maior), ao mesmo tempo que se misturava todos eles para aparentar solidez. Cada grupo de títulos, sob a forma CDO, por sua vez, se via transformado em outro produto financeiro. Tudo isso é um esquema mercadológico, algo que sempre vem após uma vulnerabilização da vida das pessoas aos interesses econômicos.
A Lei de Modernização dos Mercados Futuros de Commodities, implementada no arcabouço da ideologia monetarista (a qual acredita que, com uma moeda estabilizada, o mercado proverá equilíbrio e funcionamento da sociedade), veio possibilitar que essas pirâmides chegassem a alturas ainda muito maiores. Cada CDO foi securitizado sob a forma de CDS (contratos nos quais o vendedor se compromete a reembolsar, corrigido a juros, os pagamentos do comprador se os instrumentos de crédito não forem honrados), quando então seus riscos não constavam mais nos balanços da instituição financeira — o que efetivamente fez o crédito ficar muito mais barato.
Isto não tem nada a ver com as costumeiras petições de princípio mercadistas a respeito de inundação de dinheiro por parte do “Banco Central” — no caso, o FED — ou a irreal cobertura de risco por parte do governo. Os preços subiam, mas a avaliação de risco de mercado continuava a cair nas instituições financeiras privadas, aumentando a oferta creditícia e incentivando-se a ofertar mais. Um ciclo vicioso no mercado que, na complexidade social, não assimila e corrige devidamente os riscos sistêmicos, mas tende a deixá-los acumular até o caos.
Na prática, pessoas ávidas por unicamente maximizar seus ganhos no prazo mais curto possível estavam comprando seguros das casas de outras pessoas, que apenas queriam realizar o sonho da casa própria, manipulando-as em seu casino.
Mas qual o papel então da política financeira na Grande Recessão de 2008? Como os dogmas das seitas de fundamentalismo de mercado tiveram papel neste processo?
Onde estava John Galt na crise de 2008, o rico virtuoso que os liberais dizem que carrega o mundo nas costas?
Na verdade, o que as autoridades monetária fizeram, sob controle do presidente do FED Alan Greenspan, fã confesso de Ayn Rand e Milton Friedman, dois ícones do neoliberalismo,[11] foi exatamente um “desintervencionismo”, ao deixar a moeda flutuar sem intervir para enxugar a liquidez circulante, deixando a taxa de juros baixa.
Greenspan declarara: “Não existe nada na regulação federal que se faça superior à regulamentação do mercado”; “parece não haver necessidade de regulação governamental nas transações com derivativos de balcão”. “Tenho uma ideologia. Minha visão é de que os mercados livres e competitivos são de longe a melhor maneira de organizar a economia.”[12] Mais tarde ele confessará estar errado.
Em abril de 2003, no Museu e Biblioteca Presidencial Ronald Reagan, Greenspan afirmou categoricamente[13] que não havia bolha imobiliária. Greenspan disse ainda, em 2004, que este mercado se regula contra a especulação, alegando que “ao vender uma casa, os proprietários se mudam e vão morar noutro lugar”.
Don Kohn, outro neoliberal monetarista diretor do FED, que se tornaria vice-presidente, afirmava que com intervenção “o governo corre o risco de enfraquecer a regulação privada e a estabilidade financeira ao desestimular os incentivos”; (…) “os atos de grupos privados para se proteger — o que o presidente Greenspan chamou de regulação privada — são em geral muito eficazes”.[14] É nítida a ideologia que orientava as autoridades.
Se a autoridade monetária tivesse atuado aumentando a taxa de juros, retirando liquidez e estimulando inversões financeiras do setor produtivo para os títulos do tesouro — em um momento em que a economia estadunidense crescia em confiança (a produtividade crescia após uma virada cíclica em fins de 1993 devido às inovações dos sistemas de informação nos fluxos de estoques e registros das firmas, o que, juntamente com a enxurrada de produtos de consumo baratos do leste asiático, dissolveu qualquer pressão inflacionária). Aí sim, aí inteligentemente pode se dizer que sim, o FED sob Greenspan (até há pouco tempo o gestor ícone mundial dos fãs do “Estado mínimo”) teria sido “invervencionista”.
No início de 2008, a Bloomberg, tradicional parceira do Instituto Mises, previu que a média de ganhos do ano seria de 11% no “Standard & Poor’s 500 Index”. Mas no final do ano, o índice S&P 500 tinha caído 38%, fritando 29 trilhões de dólares do mercado.[15]
Quando se submete a vida das pessoas à lógica de um cassino

As protagonistas da crise de 2008 foram justamente as firmas do chamado “shadow banking system”,[16] ou, em uma tradução livre, sistema bancário oculto, as quais jamais foram reguladas. São instituições financeiras não depositárias. Foi justamente o fato delas operarem sem nenhuma regulação que as levaram à bancarrota, o que levou à crise. Como exemplo, o Auctionate Rate Security (ARS),[17] que o mega-banco Lehman Brothers operava. Os operantes emprestavam dinheiro à instituição mutuária (recebedora de empréstimos) a longo prazo, enquanto toda a semana a instituição leiloava os papéis dos investidores permanentes com taxas de juros que se aplicavam a todos os recursos investidos até o leilão seguinte. Os investidores recebiam taxas de juros mais altas que as oferecidas pelos bancos sobre depósitos, e os emitentes pagavam taxas de juros menores que as incidentes sobre empréstimos bancários.

Tal cambalacho servia para escapar dos impostos e da regulação. Estes sistemas de fundos desregulados não precisavam, como os bancos, conterem reservas líquidas, lastro e capital substancial, pagando ainda despesas do sistema de garantias de depósito. Tratava-se de um “mercado livre”, que implicava na alavancagem de aplicações de alta rotatividade[18], ou seja, empréstimos tomados para se buscar maximizar lucros líquidos sem precisar despender investimentos proporcionais. Em 2008, só o ARS envolvia 400 bilhões de dólares. Nesta época, os leilões começaram a fracassar porque os investidores que se iludiam achando que tinham acesso imediato à liquidez se viram presos a investimentos com durações de décadas e irresgatáveis antes dos vencimentos. O efeito dominó no fracasso dos leilões levou ao pânico da corrida aos bancos, tal como na crise de 1929.
A crise atingiu outros elementos do sistema financeiro, como os asset-backed commercial paper conduits, os structured investiment vechicles, auction-rate preferred securities, tender option bonds, os carry trades japoneses e os variable rate demand notes[19], mais os fundos de hedge, que perfaziam muito mais ativos em trilhões de dólares do que os balanços patrimoniais dos maiores bancos de investimento e das empresas controladoras de bancos. Mais até do que todo o sistema bancário. As operadoras não precisavam ser “forçadas” a nada, elas ganhavam com os esquemas piramidais “ilastreáves” e exponenciais, montados em cima dos contratos dos mutuários da base, tirando oportunidade de desesperos. Estavam sedentas pelos títulos hipotecários negociáveis ancorados em empréstimos que reuniam vários milhares de hipotecas.
Vinha se aprofundando a desregulamentação sobre instituições bancárias comerciais, com operações extracontábeis, os off balance sheet[20], provenientes da revogação, por parte do FED, do Glass-Steagall Act[21] (1999), retirando as regulamentações do sistema bancário no setor de investimentos. O governo Bush, a partir de 1999, aplicou mais desregulamentação por meio do Office of the Comptroller of the Currency (OCC)[22], bloqueando a supervisão dos subprimes pelas unidades federativas. Em 2003, deu atribuições esquisitas ao OCC para bloquear iniciativas dos Estados que quisessem submeter os empréstimos subprime a supervisões. Agravando o processo, a lei de desregulamentação chamada Gramm-Leach-Bliley[23], de autoria de Phil Graham, senador republicano pelo Texas, foi promulgada[24]. Vale lembrar que Graham é o mesmo que obteve aprovação do Senado para homenagear Milton Friedman com uma medalha de ouro, dizendo na ocasião que “o governo não é a resposta. (…) Aprendemos que podemos promover o crescimento econômico e a estabilidade por meio da concorrência e da liberdade”.
Agências de risco privadas: a aposta dos gestores neoliberais
“Quase todas as agências reguladoras, legisladores e acadêmicos assumiram que os gerentes desses bancos sabiam o que estavam fazendo. Em retrospecto, eles não sabiam. A divisão de produtos financeiros do American International Group (AIG), por exemplo, obteve 2,5 bilhões de dólares de lucro bruto em 2005, basicamente revendendo seguros subvalorizados sobre títulos complexos e não muito bem compreendidos. Geralmente descrita como ‘caçar níqueis na frente de um rolo compressor’, essa estratégia é lucrativa nos anos comuns e catastrófica nos anos ruins. Quanto a esta última queda, o AIG teve seguros não pagos sobre mais de 400 bilhões de dólares em títulos. Até esta data, o governo dos Estados Unidos, no esforço de resgatar a empresa, aplicou cerca de 180 bilhões de dólares em investimentos e empréstimos para cobrir as perdas que a sofisticada modelagem de risco econômico do AIG disse que seriam praticamente impossíveis”.
Simon Johnson, diretor econômico do FMI em “The Quiet Coup”, The Atlantic, 2009 [25]
Como Robert Hiller demonstrou[26], as agências de classificação privadas e companhias de financiamento atuaram pela delegação de Alan Greenspan e de gestores economistas neoliberais para a direção do Federal Reserve (FED). Essas agências acabaram por esvair o papel do Estado, substituindo-lhe pelas novas ferramentas de redes de informação especializada e assim diminuírem custos de transação aos agentes. A partir de 1997, fiavam-se no aumento de valor de mercado dos imóveis — ou seja, logo antes da revogação exigida pelo “mercado” do Glass-Steagall act —, cujos valores eram inflados pelos especuladores. As hipotecas passaram a a atender a lógica de ativos que eram valorizados com operações em cascata. Todo um esquema de comunicação imensamente financiado vendia a sensação aos agentes de que os ativos iriam mesmo só continuar a se valorizar.
Estes ativos passaram a ser agrupados em pacotes de derivativos, contratos firmados sobre pagamentos no futuro, remetidos ao valor de um indexador, onde o “mix” ficava avaliado como “classe A”. Assim, os títulos podres não afetavam as avaliações de risco. Com os preços se valorizando, a curva de oferta e demanda se afastava imensamente do equilíbrio e irregularmente — ou seja, sem “mão invisível” — pois a utilidade percebida das hipotecas aumentava à medida que os preços dela subiam.
A taxa de juros do FED foi abaixando a partir do novo ciclo de crescimento se inflação que mencionamos e, como vimos, não temos evidência de nenhum ato oficial reforçando a “Community Reinvestiment Act“ de 1977 – os juros nominais de valor zero resultaram justamente de uma absurda desregulamentação do mercado em 1999. O cancelamento da Glass-Steagall pelo governo Bush Jr., sob lóbi do “mercado” financeiro, retirou inúmeras regulamentações básicas, como a relacionada a um agente exercer o mesmo trabalho de administrador, diretor, funcionário e operador de uma firma de certificado de posse de valores mobiliários e de outro banco qualquer.
Como mencionado, acabou-se com a separação entre bancos comerciais e os de inversões de investimentos, em que os primeiros passaram a especular livremente com ativos de natureza não exigível. Companhias de seguros foram oficialmente autorizadas a especular com negociações de valores mobiliários. Eliminou-se substancialmente as exigências então vigentes sobre recolhimentos nas operações junto à câmara de compensação. Abriu-se a porteira para a formação de cartéis. Como resultado, houve desacoplamento da economia real, a “desprecificação” dos riscos, o que favoreceu o cassino de alto rendimento de curto prazo acompanhado de um alavancamento incalculável de riscos inimagináveis.
Cálculos estimam que foram aplicados mais de 300 milhões de dólares em lóbi para essa desregulamentação, em que 207 congressistas republicanos votaram a favor e cinco contra. O mote era a facilitação de fusões, pois já imediatamente antes fora criado o precedente com a fusão do Citicorpe com o Travelers Group, que era até então ilegal, de acordo com o Bank Holding Company Act[27].
O abismo ainda paira à frente

Enfim, definitiva e indubitavelmente, o ônus recai pesadamente sobre a ideologia do “livre mercado”, que prega desregulação do sistema financeiro, fora do alcance das democracias política e social. O que ocorre hoje é justamente o fato de se ter aberto a caixa de Pandora das desregulamentações e não ter como rastrear os fundos paralelos no mundo. Novas pirâmides se formaram, com mais inovações financeiras e fundos de hedge operando em conjunto, assumindo posições vendidas e compradas em pontas do mesmo circuito. O limite do poder das reservas em atuar como defesa devido ao problema de lastro, de esquemas imensuráveis de derivativos em cima de instrumentos de crédito de base, voltou a ser profundamente frágil.
Os detentores dos ativos financeiros em liquidez podem agir muito mais rápido do que a capacidade das empresas do setor produtivo manterem o capital estável para se desenvolverem em longo prazo, com grande defasagem de velocidade e exponencial aumento de criação de títulos de crédito, em comparação com os ativos reais das atividades produtivas. Como dito pelo investidor Warren Buffet, tratam-se de “armas financeiras de destruição em massa”, que escapam do alcance dos Bancos Centrais, não tendo governo, mas o “livre mercado”, o que as tornam absolutas.
Movimentos de direita nos EUA fizeram de tudo para impedir ajuda financeira aos que perderam seus imóveis em uma crise provocada pela implantação de políticas neoliberais que esses mesmos movimentos apoiaram. Um repórter da CNBC, ativista do Estado Mínimo, ilustra perfeitamente o tom: “Será que realmente queremos subsidiar as hipotecas dos perdedores? Isso aqui é a América! Quantos de vocês querem pagar a hipoteca do seu vizinho que tem um banheiro extra e não consegue pagar suas contas?”.[28]
Os primeiros sistemas modernos de taxa sobre capitais, heranças e renda, eram irrisórios, mas serviam pelo menos pra justamente lastrear os ativos capitalizáveis e a economia em geral. Enquanto isso, o poder de mercado da rede mundial do poder corporativo concentrava, distorcia, cobria riscos, coagia instituições.
Perdemos o bonde da Taxa Tobin[29] que além de sua finalidade ética e social, permitiria isso em grande parte no sistema financeiro. Além de regulamentação sobre tomadas hostis, proibição de vendas a descoberto, aumentar a margem de exigência na negociação de ações, etc. Isso precisaria de uma arquitetura institucional bem mais multilateral e efetiva do que a atual disponível. Mas há o temor de que o carro esteja sem freio. E se não cobrarmos a responsabilidade dos pregadores do neoliberalismo, seremos atropelados. Eles já nos devem trilhões.
“O senhor descobriu um problema?” — perguntou Henry Waxman a Alan Greenspan em outubro de 2008[30].
Descobri um um problema no modelo que me parecia uma estrutura vital, um modo como o mundo funciona por assim dizer.
“Em outras palavras, o senhor descobriu que sua visão de mundo, sua ideologia, não é correta” — interpelou Waxman. “Ela não estava funcionando?”
“Exatamente” — respondeu Greenspan. Foi exatamente por essa razão que fiquei chocado. Porque há 40 anos ou mais eu tinha provas consideráveis de que funcionava excepcionalmente bem.
Notas
Para maior compreensão dos truques financeiros no coração da Crise de 2008, recomendamos ainda o agradável e inteligentíssimo texto Entendendo a crise: o que são as tais das CDOs.
Ver também:
Steve Keen: um arrepiante modelo matemático sobre o futuro desta crise
Infomoney — Entidade calcula os custos da crise de 2008: US$ 14 trilhões
Referências
[1] BORN, Brooksley E.; HOUSEMAN, Alan — Oral history interview with Brooksley E. Born
[2] SANDEL, Michael — O que o dinheiro não compra
[3] SF Weekly — The Great Eliminator: How Ronald Reagan Made Homelessness Permanent
[4] FredieMacc — Relação de Investidores
. Lender’s Internal QC Reporting
. KPMG — Independent Auditor’s Report (PDF)
[5] AITH, Marcio — Escândalo nos EUA tem “conexão brasileira”
[6][7] RITHOLTZ, Barry — Get Me ReWrite!
[8] The Telegraph — Australian assets sale boosts HBOS funds
. ………………………. — Financial crisis: Banks nationalised by Government
. Independent — Wall Street humiliated by nationalisation of banks
. The Guardian — Government to spend £50bn to part-nationalise UK’s banks
. …………………….. — Anglo Irish Bank nationalised
. BBC — Iceland nationalises Glitnir bank
. Financial Times — Iceland nationalises Straumur-Burdaras
. NY The Sun — Fortis Bank is Nationalized by Belgium, Netherlands, Luxembourg
. Reuters — Dutch nationalise SNS Reaal bank group in $14 billion rescue
[9] Shelterforce — Reagan’s Legacy: Homelessness in America
[10] Congresso Estadunidesnse — H.R.4986 – Depository Institutions Deregulation and Monetary Control Act of 1980
[11] FRIEDMAN, Milton — Neo-Liberalism and its Prospects (PDF)
. Atlas Network
[12] The New York Times — Greenspan Concedes Error on Regulation
[13] Federal Reserve — Remarks by Chairman Alan Greenspan
[14] Federal Reserve — Remarks by Governor Donald L. Kohn
[15] THOMASSON, Lynn (2009) — Top Stocks Pickers See 11% Rise in S&P 500
. KISLING, Whitney; HWANG, Inyoung; THOMASSON, Lynn (2011) — Strategists Sticking With 17% S&P 500 Gain on Higher Profit
[16] DAVIS, Owen — What Is Shadow Banking? Risky Sector At Center Of Sanders-Clinton Debates
[17] DOHERTY, Jacqueline —The Sad Story of Auction-Rate Securities
[18] DOWBOR, Ladislau — A crise financeira sem mistérios
[19] DURRER, Michael — Asset-Backed Commercial Paper Conduits
. Financial Times — Structured investment vehicles’ role in crisis
. The Wall Street Journal — A new sore spot emerges: it’s tender-option bonds
. BAIRD — Variable Rate Demand Note Disclosure
[20] http://xn—off%20balance%20sheet-ol9l/
[21] NY Times — Glass-Steagall Act (1933)
[22] OCC — OCC Regulations
[23] New York Times — Washington’s Invisible Hand
[24] Senate Banking Committe — GRAMM’S STATEMENT AT SIGNING CEREMONY FOR GRAMM-LEACH-BLILEY ACT
[25] JOHNSON, Simon — The Quiet Coup
[26] SHILLER, Robert J. — The Subprime Solution: How Today’s Global Financial Crisis Happened, and What to Do about It
[27] El Tiempo — CITICORP Y TRAVELERS ESTREMECEN AL MUNDO FINANCIERO CON SU ACUERDO DE FUSIÓN
[28] Rick Santelli, do Tea Party: CNBC’s Rick Santelli’s Chicago Tea Party
[29] RAMONET, Ignacio — Desarmar os mercados
[30] New York Times — Greenspan Concedes Error on Regulation