O capitalismo continua empilhando vitórias, e segue o seu curso firme e obstinado, indiferente às críticas e queixas morais.
Mas quem desconhece essa frase dita pelos críticos do capitalismo: “no capitalismo, os ricos ficam cada vez mais ricos, e os pobres cada vez mais pobres”?
Ora, as sociedades não vêm reduzindo continuamente a pobreza no mundo? Pelo menos é o que mostram os dados mais recentes da ONU e do Banco Mundial.
Mesmo assim, quem nunca ouviu falar que a sociedade capitalista seria “completamente injusta”, que o capitalismo é “incorrigível” e “incapaz” de progredir e melhorar a vida dos mais pobres? Ou que ele é um “jogo de soma zero”?
Reais críticas à Esquerda ou Mitos sobre o chamado “esquerdismo”? A falácia do espantalho[1]
Qual campo da política defende isso tudo, mais precisamente? A princípio, encontramos essa reflexão no próprio Manifesto Comunista:
“O trabalhador cai na pobreza, e o pauperismo desenvolve-se ainda mais rapidamente que a população e a riqueza” (Marx e Engels, 2002, p. 29).
Esta frase parece aos olhos de hoje realmente exagerada e portanto incorreta, haja vista que a Inglaterra, por exemplo, onde Marx e Engels viveram e vieram a falecer, se transformou num país de grande desenvolvimento econômico e com alta qualidade de vida. Tudo leva a crer que apesar das “profecias catastróficas” do marxismo, a pobreza está sendo fortemente reduzida. E que o capitalismo prova, contra os seus detratores, que é mais flexível do que imaginavam os marxistas, sendo capaz de gerar mobilidade social positiva.
Temos aqui então duas teses antagônicas. De um lado, um conceito ou uma narrativa pessimista sobre o capitalismo (de origem na Esquerda radical), de outro lado, uma segunda narrativa, dessa vez otimista (defendida pela Direita liberal ou conservadora).
Quem tem razão?
Ou antes, quem está mais próximo de uma explicação racional para as transformações em curso – caso formos honestos e não partirmos de um maniqueísmo grosseiro? Hoje é cada vez mais comum criar argumentos que caricaturam e desumanizam o adversário, utilizando a falácia do espantalho.
Vamos retomar alguns fatos, construir algumas teses supostamente defendidas pela Esquerda (todas versões do mesmo espantalho de base) e dar algumas respostas a elas.
1 “A Esquerda recusa o progresso produzido pelo capitalismo”

Não é correto afirmar que a esquerda se identifica com uma visão fatalista sobre o capitalismo. O próprio Marx nunca desmentiu a possibilidade do progresso moderno baseado no aumento exponencial da produção de riquezas através da industrialização, tal como mostrou em suas obras da maturidade. O que ele e a esquerda contemporânea sempre ressaltam é o caráter profundamente desigual e contraditório deste progresso. Por isso mesmo, tais setores apostam nas lutas sociais para acelerar as transformações sociais.
Também não é verdade que a esquerda – os “comunas esquerdopatas”, como a direita conservadora gosta de apelidar qualquer crítica consequente do sistema atual, simplesmente rebaixando agora as pessoas (argumento ad hominem), tentando expulsá-los para fora do debate público –, quisesse negar o capitalismo de maneira totalmente abstrata, com um simples gesto utópico de recusa, um simples niilismo. Muito menos se trata, para eles, de substituir a socialização moderna por um comunitarismo ou um coletivismo de tipo pré-moderno. Tudo isso são fantasias criadas pelo imaginário geopolítico da época da Guerra Fria, que pelo jeito ainda não morreu.
Se o progresso é objetivamente contraditório, então cabe compreendê-lo de maneira histórica e crítica: deveríamos reconhecer os avanços sociais potencializados pela modernidade tanto quanto os possíveis atrasos ou os pontos de estrangulamento e de bloqueio de transformações sociais efetivas. Pode-se mostrar como progresso e atraso/bloqueio vêm juntos, e como nesse sistema, infelizmente, um momento não se dá sem o outro. Isto, aliás, já estava presente na crítica dos movimentos populares radicais do século XIX, que eram capazes de criticar o capitalismo e as classes dirigentes e ao mesmo tempo enaltecê-los e criar alianças estratégicas com eles, como um passo significativo em direção a uma possível sociedade emancipada, mais livre, justa e racional.
2 “A Esquerda não respeita a ordem e quer sempre impor uma revolução sangrenta”
Os conservadores esquecem-se do caráter “revolucionário” do próprio capitalismo, algo que o próprio liberalismo desempenhou contra a antiga ordem injusta, que sacralizava as desigualdades e os privilégios. Tanto é verdade que até o já citado Manifesto admirava esse ímpeto revolucionário da atual classe dominante: “a burguesia desempenhou na História um papel eminentemente revolucionário” (2002, p. 42).
Pode ser estranho para alguns ainda hoje, mas a esquerda é capaz de reflexões descoloridas de todo fervor anticapitalista, que louvam os avanços técnicos do capitalismo industrial e os horizontes “esclarecidos” do mundo liberal-democrático face à herança histórica feudal e patriarcal. E por isso mesmo, as transformações radicais – que hoje tanto espantam os conservadores e que hoje esqueceram que um dia a “burguesia” também foi revolucionária – já estavam em germe ou mesmo em curso no desenvolvimento do mundo moderno:
“a burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais.” (Marx e Engels, 2002, p. 43).
A velocidade impressionante das atuais mudanças globais promovidas pelo capitalismo, que chegam a inverter o progresso em seu contrário (por exemplo, a destruição irracional de recursos naturais e das próprias capacidades humanas e tecnológicas de produção – uma crise ecológica e social de tamanho explosivo está provavelmente prestes a estourar no mundo nas próximas décadas), colocam seriamente em dúvida a alegada “prudência” e o “legalismo” do suposto “conservadorismo” das elites e de seus guardiões ideológicos.
Desde pelo menos os anos 1980, as classes dirigentes partiram para o aberto confronto contra os direitos e proteções sociais básicas no mundo todo. Está em curso uma verdadeira “rebelião das elites” (C. Lasch): a antiga ordem capitalista, que parecia “pacificada” e “equilibrada” nos “30 anos gloriosos”, está se desmanchando, promovendo crises sobre crises, com resultados totalmente contraditórios. O mais estranho hoje é esta inversão: a Direita vai implantando um programa de reformas destrutivas, totalmente sem conceito e irracionais; a esquerda apenas reage contra a maré destrutiva de uma revolução que vem pelo alto, seja da Troika ou de Wall Street.
3 “Toda a Esquerda é sempre extremista e radical”
Assim também não é de se estranhar que a esquerda – que tem múltiplas faces e não se resume de forma alguma ao “comunismo”, ao marxismo ortodoxo, ao stalinismo etc. – seja conhecida justamente pelos aspectos “progressistas” e mesmo “liberais” que defende em termos políticos, sociais e culturais.
Como se sabe, trata-se de um setor amplo da sociedade que procura fazer alianças com outros setores situados no centro e mais à esquerda do campo político: sociais-democratas, sociais-liberais, liberais-democratas, “nacional-desenvolvimentistas”, e todos os movimentos sociais e populares (rurais e urbanos, ambientalistas, feministas, étnico-raciais etc.). Eis o chamado campo dos progressistas. Mas se assim é, por que insistir na versão caricatural de um “inimigo” idiotizado e irracional?
Há muito, como se sabe, o ímpeto radical e voluntarista da esquerda foi contido (e autocontido pelo próprio movimento socialista). A esquerda “realmente existente” há muito compreendeu o valor da democracia numa sociedade que se diversificou e se complexificou ao extremo. Uma “Revolução” nos velhos moldes há muito saiu do horizonte. Um segredo de polichinelo para quase todos, pois nenhum partido ou movimento dito “socialista” hoje mantém expectativas reais de uma derrocada do capitalismo a curto ou médio prazo (a não ser os seus membros mais imaturos e altamente iludidos pelo próprio discurso).
4 “Somente a Direita liberal e conservadora é capaz de criticar o Socialismo”, ou, “A Esquerda parou no tempo e é incapaz de autocrítica”
Ora, uma parte da esquerda também fez críticas exaustivas às experiências socialistas realmente existentes, afundadas em elementos contraditórios insanáveis: ditaduras burocráticas ossificadas, repressão violenta de opositores e formação de campos de trabalho forçado, lógica armamentista ensandecida, repressão às liberdades individuais e grupais (diversidades étnicas, de gêneros etc.), enfim, modernização social copiada ou “emulada” do Ocidente capitalista, ainda centrada na acumulação de valor e de capital (o exemplo máximo é a China atual), fundada no trabalho alienado, exaustivo, e na geração contínua de problemas ambientais – tudo muito semelhante aos problemas do mundo ocidental. (Vide as leituras de Robert Kurz, 1998).
Outra parte da esquerda viu com bons olhos as possibilidades abertas pelo desenvolvimento dirigido por políticas keynesianas e por um amplo Estado de Bem-Estar, tal como construído no pós-guerra. Por isso, uma estratégia baseada em reformas democráticas graduais passou ao primeiro plano para os movimentos da esquerda popular no mundo todo, da social-democracia europeia aos próprios partidos de trabalhadores, incluindo os movimentos socialistas e comunistas, como na Europa e na América Latina.
5 “Para a Esquerda, a tese do empobrecimento dos trabalhadores é uma lei natural e uma profecia realizada”
Esclarecidos esses pontos, cabe voltar ao tema da pobreza e à frase-espantalho maior da introdução deste artigo. É sempre bom saber contextualizar a análise, reconstruindo o quadro histórico do capitalismo europeu do século XIX. É claro que a Inglaterra industrial gerou imediatamente mais riqueza social, tanto quanto é claro que criou simultaneamente uma grande massa de trabalhadores pobres e miseráveis, que tinham jornadas de 16 horas diárias.
O menos evidente, no entanto, é que somente o processo de luta política dos trabalhadores, e não a evolução inercial do capitalismo industrial por si só, modificou tal situação no país e no mundo. Para reconhecer isso não é preciso fazer nenhum elogio ingênuo ao capitalismo ou ao socialismo – a não ser que eles tenham se tornado para alguns uma espécie de religião.
A direita conservadora, porém, é bem mais intransigente em seu credo. Na verdade, ela faz do capitalismo uma religião do esquecimento histórico e da sacralização das relações existentes. Um fato lamentável que vem ocorrendo com alguns escrevinhadores de “guias politicamente incorretos” de nosso tempo, aliás copiando a direita neomacarthista dos EUA, totalmente despreparada e que se contenta com uma ração altamente ideológica preparada especialmente para “dummies”, que estimula comportamentos irracionais de todos os tipos.[2]
Assim, vale perguntar: a esquerda não defendeu a tese da “pauperização”? Uma tese que serviria como estímulo político, isto é, como uma espécie de pá auxiliar da “toupeira” revolucionária? A resposta é sim; mas não de maneira unilateral, antes de modo histórico e crítico. Ela considerava a conjuntura e as tendências. O que crescia naquela época – e o contexto real, aqui, é a miséria da Alemanha em fevereiro de 1848, a Irlanda colonial, a situação de atraso da Itália e de toda a periferia europeia, em suma, a Europa reacionária anterior à Primavera dos Povos – era tanto a riqueza social (de base industrial) como a pobreza de uma imensa classe trabalhadora em formação. A tese do empobrecimento foi fiel às tendências que se podiam verificar empiricamente no tempo.
Os trabalhadores eram imediatamente uma não-classe social: totalmente fragmentados, não reconhecidos e sem expectativas de ascensão social instantânea. Após ser violentamente expulsa do campo, essa classe se concentrou nas grandes cidades: metrópoles industriais que rapidamente concentrariam a riqueza e a miséria humana, em bairros segregados, formando áreas nobres e “slums” em subúrbios deteriorados, gerando um ambiente precário e desigual, poluído e insalubre, inseguro e violento. Os romances de Dickens e Zola que o digam!
Mesmo assim, os trabalhadores não estavam destinados “fatalmente” a viver na miséria, nem cair na mendicância e no chamado “lumpen-proletariado”. A não ser quando seus membros caíssem no desemprego e no chamado “exército industrial de reserva”, devido às crises periódicas. A regra geral, em tempos de normalidade econômica, seria bem outra. Segundo a teoria geral dos salários de O Capital, por exemplo, a vida do trabalhador assalariado giraria em torno da reprodução da vida, isto é, em torno de uma média vital socialmente admitida (mas também disputada politicamente). E por isso as jornadas diminuíram e os salários aumentaram no tempo.
6 “A Esquerda é sempre ‘totalitária’, e somente a Direita defendeu o progresso, as liberdades e a democracia”

Outro mito vergonhoso. Não haveria democracia de massas sem a luta pelo sufrágio universal realizada pelos movimentos da esquerda. Por isso, capitalismo sempre pôde conviver em regimes ditatoriais implantados pela direita no mundo, monarquias orientais, regimes nazi-fascistas, regimes “socialistas” como o chinês etc. Em segundo lugar, seria possível citar vários liberais como porta-vozes das elites industriais e comerciais que naturalizaram os trabalhadores como indivíduos incapazes, destinados à dependência e à obediência: “escravos do trabalho”, “crianças” sem direito ao voto e à participação política, formando multidões de “bestas irracionais”, uma “raça inferior” que deveria ser controlada, e assim por diante. Domenico Losurdo (2004, p. 45-9) mostra como a elite liberal europeia sempre pensou a democracia de modo instrumental: uma forma camuflada de manter uma oligarquia de endinheirados no poder, quando não um estado de exceção ou um “bonapartismo soft”, como mostra o autor.
O liberal SIEYÈS dizia: a “multidão sem instrução” está destinada a ser manobrada, pois é formada por “cidadãos passivos”, no fundo, “máquinas de trabalho” “servis” ou “instrumentos bípedes”. Edmond BURKE, um autor tão caro a Hayek e Dahrendorf, inclui o trabalhador rural ou o assalariado na categoria de “instrumentum vocale” (típica da antiguidade greco-romana), formando apenas uma “multidão suína” (swinish multitude). John LOCKE nos garante que “a maior parte da humanidade” não pode deixar uma condição de trabalho na qual é “enslaved” [escravizada], e o trabalhador manual “não é capaz de raciocinar melhor do que um indígena”. E MANDEVILLE, outro clássico da tradição liberal, conclui que: “a parte mais mesquinha e pobre da nação”, “the working slaving people“, está destinada para sempre a desempenhar um “trabalho sujo e semelhante ao do escravo”; a mesma massa “sem instrução e sem cultura liberal” da América, que podia ser contraposta aos “ricos e bem nascidos” de HAMILTON e John ADAMS, que por sua vez, sempre pensaram um “Executivo forte”, oligárquico, para barrar a “anarquia e o caos” das demandas de participação de camponeses e trabalhadores da “ralé miúda”.
Tais são os ecos “liberais” do passado que se escutam ainda hoje: depois de MISES reduzir a democracia às “puras” leis (supostamente) automáticas do Mercado, temos HAYEK, que considera que liberdades políticas são algo contingente e mesmo indiferente: “um povo que seja livre nesse sentido não é, necessariamente, um povo de homens livres; e não é indispensável gozar desta liberdade coletiva para ser livre como indivíduo” (The Constitution of Liberty, 1960, citado em Losurdo, 2004, p. 262). Um entre vários exemplos. Uma evidente alergia pela democracia social e os pobres em geral, que trai uma nostalgia de um “mundo livre”, sim, livre do sufrágio universal e das demandas populares. Aqui tais neoliberais mostram a sua verdadeira face autoritária, defensora dos grandes capitalistas – oligopolistas por natureza (pois o capitalismo mudou de fase há muito tempo).
Ora, a Esquerda nunca identificou a massa do povo trabalhador com tais “bestas de carga” ou a uma “multidão criança” a ser governada por uma elite intelectual, cultural e racialmente “superior”. A negligência e o erro teórico do diagnóstico de Marx[3] – pois ele era só um cientista social, não um profeta – foi a possibilidade do padrão de vida médio aumentar bastante nos países altamente industrializados, criando a realidade (mas também os mitos) da “sociedade de consumo” e das “classes médias”, tal como se deu no pós-guerra europeu e americano.
Mas nunca ele recusou que essa média salarial vital pudesse ser ampliada historicamente conforme o crescimento do produto social total e a pressão das lutas sociais. O trabalhador estaria determinado, sim, a reproduzir apenas a sua força de trabalho, ou seja, sua ausência de propriedade dos meios de produção, sem poder, salvo raras exceções (de acordo com o contexto), acumular dinheiro ou meios de produção para se alçar à classe que acumula capital.
As razões lógicas para isso são simples: se isso não acontece, se trabalhadores sem propriedade de meios não são encontrados no mercado para serem absorvidos pelo capital em múltiplas funções fragmentadas e mais ou menos rígidas, então as margens e o volume de lucro são “esmagados”, colocando a adorada e idolatrada acumulação de capital em xeque. Nos momentos de crise e colapso essa situação se agrava ainda mais, ampliando a desvalorização do preço da força de trabalho. Uma sociedade global de microempresários e empreendedores de si mesmos é uma ideologia neoliberal, típica da classe média de países desenvolvidos, vencedoras na concorrência feroz atual, hoje vendida aos quatro cantos do planeta como panaceia universal. Aqui, para a esquerda teórica “radical”, os limites ideológicos do reformismo.
7 “Segundo a Esquerda o capitalismo será um eterno jogo de soma zero”
Mais um espantalho mal feito. Ao contrário do que supõe o senso comum conservador, segundo as teorias da esquerda mencionadas, os trabalhadores ganham sim o “justo” equivalente em valor para se reproduzir enquanto classe, e isso quando têm trabalho permanente; ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, o real ganho dentro do sistema – o excedente social produzido pelo trabalho de todos (e que só brincando podemos atribuir à renúncia, à poupança, ao mérito particular ou à vontade demiúrgica dos donos de capital) – é acumulado de maneira efetiva apenas de um lado: o dos controladores dos grandes ativos financeiros e imobiliários, incluindo os setores mais altos das camadas médias.
Trata-se de uma renda/patrimônio global que se concentra hoje, se quisermos citar dados aproximados, nas mãos de cerca de 1% dos proprietários do mundo, algo que lhes confere o “direito natural” de comandar a vida de 7 bilhões de pessoas (Cf. El País, “1% da população mundial concentra metade de toda a riqueza do planeta”, 2015). Esta é toda a “justiça social” que o capitalismo é capaz de realizar? Apenas na mente fraca de reflexão e memória dos novos “liberais” de internet alguns megaempresários ou especuladores como Soros passam a ser a regra e não a raríssima exceção da mobilidade social global.
Assim, o desenvolvimento global tem sido muito mais lento do que se espera de uma economia pujante tocada pela 3ª Revolução Industrial: segundo estimativas do Banco Mundial (2010), em vinte anos o número de pessoas vivendo com menos de US$ 1,25 por dia (abaixo disso é a linha da pobreza absoluta) foi reduzido em 53% em todo o mundo, caindo de 46,7% da população (em 1990) para 22% (em 2010). Que grande avanço, não é mesmo!? É preciso saber distinguir: aparência não é igual à essência, é apenas um dado isolado dela.
Na verdade, temos aqui um avanço lentíssimo e que só confirma a degradação ideológica de quem comemora essa impotência das leis sistêmicas em transformar rápida e efetivamente a vida de bilhões de pessoas. O número de precarizados e desempregados hoje atinge também a casa dos bilhões de habitantes (segundo estimativas brasileiras, o desemprego ampliado alcança, por exemplo, 22 milhões, quase ¼ da PEA).
Em nível global, isso significa a manutenção de um padrão miserável de vida para bilhões de habitantes desse nosso vergonhoso Planeta Favela, segundo mostra Mike Davis (2006) – e que apenas parece confirmar os prognósticos teóricos da esquerda clássica: sem luta social de massas, sem combate à pobreza social e do próprio território rural e urbano, o capitalismo mundial patina em torno da média e/ou do mínimo vital para a sobrevivência, sob risco de cair abaixo dele nas crises. É assim que, apesar de tudo, a tese do empobrecimento estrutural relativo continua a fazer sentido.
8 “A Esquerda não reconhece o progresso da riqueza e tem apenas inveja da riqueza alheia”
A primeira parte da frase é balela, como mostramos. Mas, vale perguntar: o que é riqueza? Será ter muito dinheiro e bens materiais? Um dos argumentos essenciais da Esquerda, na verdade, é que a riqueza moderna tem uma limitação histórica: nem sempre ela foi associada a algo tão mesquinho, reduzido e coisificado. Proprietários “ricos” e “endinheirados” podem ter uma vida social, moral e cultural miserável.
Da mesma forma, como demonstraram minuciosamente autores como E. P. THOMPSON (2001) e Harry BRAVERMAN (1980) para o contexto da 1ª e da 2ª Revoluções Industriais, respectivamente, toda melhoria relativa nos padrões de vida material dos trabalhadores foi paga com uma degradação da qualidade de seu tempo e espaço de vida, ou seja, com o aumento da alienação da liberdade e a perda de sentido da atividade. Pense-se na forma hierárquica e autoritária do trabalho fabril e burocrático, na divisão parcelar das tarefas e no ritmo coisificado e desumano, gerando acidentes, doenças, mortes, isolamento, degradação moral e psíquica, perda da liberdade do movimento e do pensamento, a insatisfação contínua, em suma: a redução do homem a puro instrumento, alheio ao que produz. Daí a emergência das lutas e dos movimentos dos trabalhadores contra essa situação, que vão muito além dos salários.
O mesmo continua a acontecer no período do trabalho flexível e precarizado da globalização, que supostamente teria “humanizado” as relações de trabalho e o consumo, como apontam os analistas da era flexível como Richard SENNET, que fala numa “corrosão do caráter” dos sujeitos, 2010; e Jonathan CRARY (2014), que mostra os “fins do sono” numa era de tarefas alongadas 24 horas, 7 dias da semana. Por isso, trabalhadores não invejam esse tipo de riqueza abstrata, antes costumam sonhar com um mundo com sentido verdadeiramente humano.
O que poderia ser uma verdadeira riqueza diante desses fatos históricos? Para um filósofo aristocrático e antissocialista como Nietzsche, ela era apenas tempo de ócio e autonomia para desenvolver um “espírito livre”. Algo muito parecido se encontra nos pensadores de origens anarquistas, comunistas e mesmo socialistas, cuja meta maior é a redução do trabalho ao mínimo necessário e a liberação do tempo dos indivíduos para uma vida plena.
Ao contrário, como bons herdeiros de uma tradição protestante, os liberais, sempre individualistas e ultrapragmáticos, nunca conheceram essa verdadeira riqueza do ócio e da autonomia face às leis impositivas do mercado e da sociedade e sua moral de mercadores.
Por outro lado, no mundo cor de rosa dos guias politicamente incorretos, que expressam a visão de classe média desmemoriada e que só vê superficialmente a Inglaterra “liberal” construída na verdade pelo bem-estar social do pós-guerra, não há nem sinal dessa discussão sobre a verdadeira riqueza em um mundo pleno de sentido, nem sinais da história de sofrimentos e sacrifícios, dramas e lutas sociais dos trabalhadores contra um sistema sem rosto humano. Para eles, o progresso e o bem-estar social caíram como que do céu por milagre, ou talvez sejam o fruto milagroso da “bondade” intrínseca do patronato e do sistema de concorrência feroz.
Para os radicais da nova Direita, esse “bem-estar” é descartável – claro, porque tolhe o seu “direito natural” de empregar “serviçais” dependentes de jornadas flexíveis e sem direitos garantidos. Como lembra Robert KURZ (1998), num artigo que mostra a permanência da fome e da degradação alimentar em plena era da globalização, a perspectiva “liberal” otimista decorre de três parâmetros ideológicos e restritos: “primeiro, ao curto intervalo de relativa prosperidade da 2ª Guerra Mundial; segundo, aos poucos países industrializados do Ocidente; e, terceiro, à tênue camada social dos respectivos vencedores da economia de mercado” (1998, p. 224-5).
9 “A Esquerda é incapaz de produzir mudanças sociais significativas contra a pobreza”
Visto pelo ângulo do agente das ações transformadoras, é preciso evitar as inversões ideológicas de sujeito, ação e objeto. Não foi o “capitalismo na Inglaterra” que transformou o povo inglês pobre em um dos povos mais ricos do mundo, como pregam os manuais. Ao contrário, foi a luta do povo inglês e principalmente das classes populares de trabalhadores ingleses, isto é, os sindicalizados e os associados aos partidos trabalhistas, quem civilizaram o capitalismo inglês, promovendo as melhorias de vida que eram possíveis.
O mesmo poder-se-ia dizer sobre os casos atuais da periferia subdesenvolvida industrializada (China, Índia, Brasil etc.). O Brasil “emergente” não é o mero fruto de uma inércia sistêmica, mas o resultado das reformas propostas pelos governos petistas. Um resultado de um movimento histórico dos trabalhadores (dos “esquerdistas”, segundo o jargão conservador), que foi construído através de uma árdua luta desde os tempos da ditadura de 64 (aliás, apoiada pelas forças liberais-conservadoras da UDN, da Fiesp, da imprensa, da Igreja e do governo americano).
Uma esquerda que venceu também a crise e os retrocessos promovidos pelos programas neoliberais dos anos 1980 e 90. A ascensão da “classe C” nos anos 2000 é um exemplo conhecido por todos. E isso se fez incentivando não “indivíduos”, mas a produção e o crescimento econômico integrados a programas de desenvolvimento social. Um misto de políticas de incentivo à demanda efetiva via investimento público em infraestrutura e oferta de crédito em geral, políticas de emprego formal e valorização real do salário mínimo, ampliação da saúde, educação, política de cotas e de assistência social.
Uma década de crescimento quase sem nenhum déficit fiscal. Houve redução da dívida pública no período, e formação reservas internacionais de cerca de 200 bilhões. A corrupção sistêmica que tragou o Partido (e todo um bloco político, senão todos os partidos) não invalida os avanços relativos, que jamais teria sido conseguido através de empreendimentos individuais, não no nosso capitalismo estruturalmente oligárquico.
Assim, a frase supostamente “esquerdista” que dá o tom ao nosso artigo: “no capitalismo, os ricos ficam cada vez mais ricos, e os pobres cada vez mais pobres” – é apenas um mal entendido. Uma falácia argumentativa criada por setores conservadores na arena midiática. A frase se dissolve diante dos olhos quando examinamos os fatos históricos. Nenhuma esquerda diz que a miséria é um destino, e por isso a combate.
10 “A Esquerda fala apenas para trabalhadores, enquanto o mundo mudou: todos são potencialmente empreendedores e partes da classe média, da nação unificada”
É verdade? Não há um discurso na Esquerda que pensa os trabalhadores como potenciais empreendedores ou uma nova classe média? Não foi a isso que assistimos nos governos petistas, no entanto. O discurso foi sempre o da integração pelo consumo e pelo microcrédito, visando uma ascensão do povo à classe média. Assim, na prática também os governos petistas forneceram crédito abundante para microempresas, agricultores familiares, consumo popular, programas de educação fundamental, técnica e universitária em massa etc.
É bom lembrar, por outro lado, que a ascensão da classe C, como mostrou Márcio Pochmann (em O mito da grande classe média, 2014), está longe de significar uma conquista dos padrões de trabalho e consumo das classes médias. O atraso brasileiro não foi de todo superado, como supunham os discursos petistas.
Assim, essa nova faixa de renda ascendente continua a pertencer à classe trabalhadora, ao mundo do trabalho alienado e da pobreza estrutural, reproduzidos em um país capitalista subdesenvolvido (e com industrialização relativamente declinante) como o Brasil. Para reconhecer isso, basta rigor histórico e conceitual. As melhorias atuais não superam a estrutura de classes socialmente consolidada pelo subdesenvolvimento nacional. Algo que, no fundo, é uma tendência social inscrita na lógica da concorrência e da divisão internacional do trabalho.
Por isso, na atualidade, o País conserva e até amplia os níveis indecentes de concentração de renda, onde os mais ricos pagam menos impostos proporcionais que os mais pobres. No país real, não contado pelos nossos amigos conservadores, a coisa é muito mais feia e conflituosa, apesar dos progressos recentes: o patrimônio declarado de 0,5% dos proprietários equivale a cerca de 45% do PIB (conferir a pesquisa recente citada do INESC, 2016) .
Conclusão: o “esquerdismo” é uma falácia do espantalho criada pelo conservadorismo

Poderíamos resumir tudo o que foi dito, lembrando alguns processos sociais que guiaram nossas reflexões. O desenvolvimento capitalista foi capaz de gerar uma classe média com alto padrão de consumo para cerca de 15 ou 20% da população global, desmentindo em parte as antigas teorias da esquerda. Por outro lado, esse mesmo desenvolvimento nos países centrais nunca excluiu a manutenção de uma classe trabalhadora “pobre” (vide EUA e Europa hoje), muito menos na periferia do sistema; sem falar na formação de um exército de desempregados permanente devido ao avanço tecnológico e às crises periódicas inevitáveis do livre-mercado. Um sistema que tendeu a pressionar a sociedade salarial para oscilações contínuas, imprimindo melhorias muito lentas e muito desiguais conforme as várias regiões do globo.
Por outro lado, então, esse sistema mundial conduziu o grosso da população global a viver em economias periféricas subdesenvolvidas, na medida em que as subordina ao papel de regiões primário-exportadoras, presas ao sistema de intercâmbio desigual, sendo vítimas de uma enorme transferência de valores e de exploração de seus recursos naturais, vítimas do endividamento e da dependência financeira e tecnológica, mesmo na atual divisão globalizada do trabalho, supostamente mais equilibrada (Giovanni Arrighi, 1996).
Como há muito se sabe, o poder aquisitivo europeu e norte-americano jamais poderá se tornar um padrão mundial generalizado. Isso explodiria os custos de produção e de reprodução da força de trabalho para o capitalismo, sem falar nos custos ambientais.
Na verdade, o capitalismo hoje se reproduz artificialmente pelos balões de oxigênio do sistema de crédito e endividamento globais. A economia financeirizada inverteu de posição em relação à economia produtiva real (Cf. Kurz, 1998). E aqui temos um dos motivos centrais que levaram à ofensiva neoliberal a partir dos anos 80 no sentido da desregulamentação geral da vida econômica e social: a dificuldade de produzir excedentes com lucro adequado e garantir demanda efetiva leva o capital à ciranda financeira e especulativa, à corrupção e à sonegação fiscal sistemáticas, que chegam à casa de trilhões e trilhões de dólares.
Vivemos um “capitalismo de rapina” e de “concorrência selvagem”, que inclui violentamente a América Latina, a África e toda a Ásia, e que não pode ser suavizado por discursos de quem está longe do batente, ou das regiões de gravíssima devastação socioambiental.
Nesse ponto, novamente, a esquerda acertou na mosca: continuam as crescentes desigualdades contemporâneas, intensifica-se a degradação ambiental e o esgotamento de recursos naturais, permanece o drama do desemprego e da precarização total de um trabalho com jornadas ampliadas, insalubres e sem sentido, que recrudescem os níveis de alienação social no trabalho e no consumo do tempo livre, e que jamais compensarão os ganhos salariais e materiais imediatos dos últimos 20 anos.
A globalização neoliberal não dá tréguas ao seu “material humano” após a intensificação da concorrência mundial e do fim das políticas de pleno emprego e seguridade da era keynesiana. O livre-mercado mais uma vez mostra sua verdadeira face obscurantista por trás dos espantalhos que fabrica, que cega a visão dos inocentes. O otimismo dos “vencedores” esconde cada vez mais o cinismo e o atropelo do pensamento crítico e autônomo.
Referências
ARBEX JR., J., Outra América. (Apogeu, crise e decadência dos Estados Unidos). São Paulo: Moderna, 1995.
ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
CRARY, J. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
DAVIS, M. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.
EL PAÍS – “1% da população mundial concentra metade de toda a riqueza do planeta”, 2015, acesso em 07/01/2017
INESC. “Patrimônio de 0,5% dos brasileiros equivale a quase 45% do PIB – e com baixa tributação”, Dezembro de 2016, acesso em 07.01.2017
KURZ, R. “Fome em abundância” in:__. Com todo vapor ao colapso. Juiz de Fora/Rio de Janeiro: Ed. UFJF/Ed. Pazulin, 2004.
LOSURDO, D. Democracia ou bonapartismo. São Paulo: Unesp, 2004.
MARX, K. O Capital. Livro I, t. 1 e 2. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto comunista [1848]. São Paulo: Boitempo, 2002.
POCHMANN, M. O mito da grande classe média. São Paulo: Boitempo, 2014.
ROSDOLSKY, R. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Contraponto/Eduerj, 2002.
SENNET, R. A corrosão do caráter: as consequências pessoais no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa, II: a Maldição de Adão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
Notas:
[1] A Falácia do Espantalho é cometida quando se simplesmente ignora a posição real de uma pessoa e a substitui por uma versão distorcida, exagerada ou deturpada dessa posição.
[2] Como se sabe, o cidadão americano médio é bastante raso em termos de conhecimentos em ciências humanas, daí a proliferação de tais “guias” para “dummies”: uma pesquisa feita em outubro de 1989 pelo Instituto Gallup mostrou que 25% deles atribuía à Constituição dos EUA o princípio comunista defendido por Marx: “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade”; 50% não sabiam que Shakespeare foi o autor de A tempestade, conforme José Arbex Jr., 1995, p. 15).
[3] Na verdade, a tese marxiana é de dinamismo e de mobilidade possível em meio ao crescimento da produtividade e da insatisfação dos trabalhadores face à também crescente exploração, fragmentação e alienação do trabalho. Eis o sentido social objetivo mas também simbólico e subjetivo mais amplo pressuposto na tese do empobrecimento da vida dos trabalhadores (cf. Rosdolsky, 2002). Como seria dito com mais propriedade em O Capital: “à medida que se acumula capital, a situação do trabalhador, qualquer que seja seu pagamento, alto ou baixo, tem de piorar”, o que significa, portanto: “acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância, brutalização e degradação moral” (Marx, 1988, Livro I, t. 2, p. 201).