A retórica que afirma serem o nazismo e o fascismo ideologias de esquerda, logo se equiparam ao socialismo e ao comunismo, passou a ser um assunto popular entre muitos conservadores “influencers”, como Jordan Peterson, Ben Shapiro, Dave Rubin, Stefan Molyeux e, no Brasil, Olavo de Carvalho. Eles se apoiam fortemente em think tanks neoliberais-conservadores, como a The Heritage Foundation e o Center for American Progress[1].
Os partidários dessa nova retórica, popularizada nas mídias sociais, são todos conservadores, identificados principalmente com o neoliberalismo e o ultraliberalismo (“anarcocapitalismo”). Esses conservadores rejeitam a narrativa histórica, o que os faz confundir ultraliberalismo e neoliberalismo (ambos os termos rejeitado por eles) com socialismo libertário (anarquismo), reivindicando para si, portanto, alguns princípios anarquistas, porém ignorando completamente sua crítica ao capital, criando assim ideologias anti-Estado e a favor do totalitarismo de mercado.
Entre tantas contradições, chamam a atenção suas próprias referências que embasam suas ideologias e retórica. Ludwig von Mises é um dos economistas mais respeitados entre conservadores e libertários, e não apenas via o fascismo como distinto do comunismo, como também acreditava que o fascismo tinha boas intenções e seus méritos. Segundo Mises, o fascismo salvou a Europa do comunismo[2] (ver página 51):
“Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando o estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das boas intenções e que sua intervenção salvou a civilização europeia no momento. O mérito que o fascismo conquistou por si mesmo viverá eternamente, embora sua política tenha trazido salvação no momento, ela não é do tipo que poderia prometer sucesso contínuo. O fascismo era um improviso emergencial. Considerá-lo algo mais seria um erro fatal”.
Contudo, a falácia fascismo/nazismo e socialismo/comunismo como iguais ou no mesmo espectro político parece ter raízes em outro pensador conservador, o filósofo e historiador alemão Eric Voegelin, que mais tarde se radicou nos EUA. Para Voegelin, o marxismo e as demais vertentes de esquerda funcionam exatamente como uma religião, que, através da busca de uma sociedade utópica idealizada, querem arquivar a ordem de uma estabilidade socioeconômica que as sociedades anteriores tinham, no intento de estabelecer um paraíso permanente na terra. Contudo, segundo Voegelin, tal utopia se perdeu na tradição do pensamento positivista da sociedade moderna e pós-moderna[3].

Voegelin conecta fundação epistemológica e ideologias acreditando que o marxismo tinha similaridades formais com as teologias cristãs (o proletário seria o crente; a revolução, o julgamento final; a ascensão do comunismo, a criação de um paraíso na terra, etc.). Em outras palavras, ele pensava que as ideologias eram “religiões secularizadas” que tentam criar um paraíso na terra. Voegelin acusou o marxismo de ter o aspecto mais perigoso de uma ideologia: o irrefutável fundamento epistemológico sobre o qual poderia fundamentar sua política, o que, por sua vez, torna o marxismo intolerante a qualquer opinião diferente. Mas, ao mesmo tempo, ele acreditava que o problema era o da corrupção da moral, causada por uma tradição de pensamento positivista inerente às ideologias modernas e pós-modernas. Tal moralidade só pode ser restaurada com a eliminação da influência do pensamento positivista, incluindo o empirismo. Essa aversão ao empirismo é também o fundamento da praxeologia de Mises, o qual acreditava que a economia era sua subdisciplina[4].
A teoria filosófica de Voegelin coincide com a retórica de Jordan Peterson contra ideologias. Peterson, assim como Voegelin, frequentemente falava sobre ideologias nazifascistas como se fossem de esquerda. Jordan Peterson frequentemente afirmava não ter ideologia, o que é frequentemente uma afirmação lembrada por seus seguidores nas mídias sociais. Mas outra contradição surge nos debates moderados do think tank: esses conservadores, na ânsia de querer provar que não são ideológicos, dizem ter como base de suas análises políticas e econômicas o empirismo. Ao se apresentarem como empíricos, eles se colocam contra a suposta imaginação utópica irracional e emocional da esquerda, esquecendo-se, porém, que a falácia “nazifascismo de esquerda” é baseada em um princípio filosófico que nega veementemente o empirismo.
Antes de Voegelin, Otto Rank, Oswald Spengler, entre outros, traçaram a relação entre religião, epistemologia e marxismo. Os contemporâneos de Voegelin, como Derrida, Laclau, Badiou ou Jameson (os pós-modernistas que Jordan Peterson chamou ironicamente como a nova onda de marxistas) também exploraram a sério essas relações. Por essa razão, a filosofia de Voegelin não parte de um pensamento original, como muitos conservadores que o conhecem e o leem gostam de acreditar. Voegelin, assim como Jordan Peterson, apenas tentou encontrar uma nova explicação para o que já foi totalmente pensado e elaborado pelos pensadores do passado, uma explicação que se encaixa no pessimismo sobre o futuro, para oferecer uma reinterpretação conservadora, que anseia um passado idealizado. Para isso, sua nova interpretação deve ser pensada de maneira que não possa acomodar as narrativas empíricas, progressistas e de esquerda contra as quais se opõem. Os conservadores acreditam que a religião, a família e as tradições são o que as ideologias de hoje (a chamada esquerda) tentam substituir com suas utopias e autoritarismo.
Eric Voegelin foi fortemente influenciado por sua formação religiosa, como Jordan Peterson, embora raramente admitisse. O que diferencia Voegelin e Peterson de pessimistas como Oswald Spengler é que este último reconheceu que a estabilidade das sociedades passadas só era possível devido a uma hierarquia rígida que reprimia conflitos. Pensadores admitidos fascistas são mais realistas do que os “libertários” de direita e neoliberais, dado que reconhecem o fato de que a livre concorrência promove mudanças rápidas que causam instabilidade social. Os conservadores de ideologia neoliberal e ultraliberal, por pensarem que capitalismo é simplesmente sinônimo de livre concorrência e não um modo de organização socioeconômica, não compreendem que o fascismo também é uma defesa do capitalismo, porém com restrições na competição para poder existir uma ordem socioeconômica. Assim como eles não conseguem entender a diferença entre fascismo e socialismo, pensando que são a mesma coisa por serem “regimes autoritários” contra o que eles acreditam ser a “liberdade e competição do capitalismo”.

Apesar de muitas contradições entre eles, o que esses pensadores conservadores pessimistas têm em comum é a tentativa de criar uma interpretação alternativa da realidade que possa acomodar e justificar sua visão negativa de mudanças rápidas e imprevisíveis na sociedade, acusando os problemas sociais e psicológicos de hoje à corrupção da moral e das tradições, a qual, segundo eles, é causada pelos progressistas de esquerda.
Spinoza, Otto Rank, Winnicott, Hannah Arendt, entre outros (cujos pensamentos são hoje confirmados pela neurobiologia de António Damásio, por exemplo), também acreditavam que as crises das sociedades moderna e pós-moderna são criadas pela tradição do pensamento positivista e tocaram a mesmo ponto que Eric Voegelin, o qual certamente foi influenciado por pensadores passados e contemporâneos. O que os diferencia de Voegelin é a crença de que a tradição do pensamento positivista é apenas parte de um processo longo e natural do desenvolvimento humano. Portanto, eles não acreditam que o retorno a um passado ideal seja a resposta ou mesmo possível.
Otto Rank em “Psychology and the soul“, bem como em “Beyond psychology“, apoia que tudo é religião, não apenas ideologias, e ele o explica, traçando o desenvolvimento da percepção humana da realidade e a percepção de nossa própria existência, por meio de estudos antropológicos. A teoria de Otto Rank pode ser totalmente apoiada pelos estudos de neurobiologia de António Damásio sobre a formação de culturas (veja “The strange order of things“/”A estranha ordem das coisas“), e que também apoia a filosofia de Spinoza (veja o livro de António Damásio “Looking for Spinoza”) em relação à percepção humana. Winnicott, contemporâneo de Voegelin, tem uma teoria muito clara sobre a formação de conflitos internos humanos e a busca de uma ordem “divina” no mundo (ver “Human nature”), que também pode ser correlacionada com obras da pensadores anteriores mencionados.
Voegelin parece usar o mesmo conceito por trás de todos esses pensadores. Sobre os humanos que procuram o permanente e o eterno, mas com a diferença de usar esses conceitos para racionalizar e culpar um grupo específico de tradição de pensamento, incluindo a própria ciência. Não posso deixar de ver alguma semelhança com a tentativa de Jordan Peterson de encontrar uma explicação alternativa fora do campo acadêmico/científico ao acusar as universidades como centros de doutrinação marxista, bem como culpar a decadência da sociedade pelo suposto “marxismo pós-modernista”. E ambos, junto com Oswald Spengler, culpam a corrupção de alguns princípios morais desde o advento da tradição do pensamento moderno.[5]
Os pensadores progressistas não culpam a corrupção de nenhuma moral ou tradição de pensamento como o ponto de partida do problema, porque, para tal culpa, é preciso acreditar em uma moral universal ou eterna. Em vez disso, eles acreditam que é um processo natural de desenvolvimento da sociedade humana [e armadilha evolutiva], que aliena as pessoas da natureza em primeiro lugar, depois de suas tribos e, hoje, uma das outras. Tudo o que costumava dar segurança permanente à autoperpetuação foi suspenso. Sem tais conexões com a terra, comunidade e indivíduos, as pessoas se sentem alienadas e isoladas. A alienação, por sua vez, faz com que as pessoas percam a noção de pertencimento e das referências em que podiam se sentir perpetuadas. Por essa razão, surgem as religiões, as instituições, os clubes, etc., assim como os supostos inimigos de sua moralidade, pensamento e tradição (religiosos). Daí a necessidade de eleger como inimigos aqueles que supostamente corrompem seus princípios morais e institucionais (por não durarem, não serem permanentes e não serem eternos), em vez de reconhecer as mudanças naturais e constantes inerentes à sociedade e ao desenvolvimento humano.
Por esse motivo, Jordan Peterson e Voegelin acidentalmente caem na armadilha que criam, tornando-se eles próprios parte daquilo que consideram um problema. O que os difere dos pensadores não conservadores e não pessimistas é que esses tentam avançar no que acreditam ser uma sociedade em constante mudança, inclusive a percepção humana da realidade. Nessa constante transformação da realidade, tentam acomodar suas análises e soluções. Acontece que Voegelin percebeu que estava se tornando um dos ideólogos contra os quais estava lutando. Um ideólogo a favor da religião, da tradição, de uma concepção moralista do mundo. Ele aborda isso na introdução do terceiro volume de “Order and History”.
Notas e referências
[1] Weisberg, Jacob. Happy Birthday, Heritage Foundation 2010-03-23 at the Wayback Machine, Slate, January 9, 1998.
[2] MISES L. V. “Liberalismus”. Germany: Gustav Fischer Verlag, 1927.
[3] Macintyre, A. Three Rival Versions of Moral Enquiry. University of Notre Dame Press, 1990
[4] Mises, Ludwig von. “Psychology and Thymology”. Theory and History. New Haven : Yale University Press, 1957 (pp. 272)
[5] Importante lembrar que Peterson não está no mesmo nível acadêmico de Voegelin e Spengler, porém os três bebem da mesma fonte, encarando os problemas sociais como um sinal de decadência causada pela corrupção de uma certa moralidade, em sintonia com sua visão pessimista da sociedade de hoje quanto ao futuro.