Foi realmente com o liberalismo econômico que se deu o progresso na história moderna da Inglaterra? A doutrina dos defensores do livre mercado é de fato uma análise correta do desenvolvimento inglês?
É uma tarefa impossível sustentar que a ideologia do “Estado Mínimo & Liberalismo Econômico” possa explicar e ser aplicado no mundo capitalista do século XX adiante, especialmente após a crise de 1929. O papel e/ou peso do Estado aumentou em todas as economias nacionais desde então, com exceção óbvia dos países que faziam parte da União Soviética naquele tempo.
Não há como reivindicar para o liberalismo o desenvolvimento das forças produtivas na economia mundial. Um dos apelos que os liberais mais fazem é que o século XX se ergueu sob os ombros gigantes da economia do Império Britânico, com especial destaque para seu poder fabril e comercial, e que este desenvolvimento extraordinário ante a história mundial se deve ao padrão daquela economia ser nos moldes da ideologia do “Estado Mínimo, Livre Mercado, Não Intervenção”. Desta forma, segundo os militantes desta ideologia, a economia no século XX poderia ter se desenvolvido muito, mas muito mais, caso o dirigismo (ou intervencionismo) estatal não se tornasse a regra no período pós-guerra.
Veremos resumidamente os pontos mais importantes da história econômica da Inglaterra e que tornam implausível esta reivindicação: conquanto uma análise empírica mostra uma realidade bem diferente do que dizem os liberais, um exame sociológico manifesta o que realmente está em jogo na tática retórica.
O Estado como gestor do capitalismo inglês
O desenvolvimento das forças produtivas na Inglaterra se despontou com a indústria da tecelagem, que no século XVIII então pôde ser a pioneira nas inovações mecanizadas. Como ela emergiu?
No final do século XV, o rei Henrique VII (22 de agosto de 1485 – 21 de abril de 1509) iniciou uma política industrial em que enviava missões para identificar os melhores locais para a instalação de fábricas de tecidos, que seriam construídas com financiamento público.
Um forte protecionismo também foi aplicado: as tarifas de importação aumentaram em até 70% e as exportações de roupas não acabadas foram proibidas em 1489, com incentivos para o processamento futuro; ao mesmo tempo implementou um estatuto que concedia aos alfaiates ingleses preferências na compra da lã antes da exportação.
Esta política protecionista foi mantida após o reinado de Henrique VII, e por muito tempo, sendo parcialmente suspensa 60 anos após o reinado de Elisabeth I (17 de novembro de 1558 – 24 de março de 1603), quando a indústria finalmente possuía capacidade de processamento em larga escala.
O dirigismo do Estado na economia na Inglaterra, além de ter possibilitado o início de sua industrialização, ainda quebrou os concorrentes do setor, como foi o caso das Províncias Unidas dos Países Baixos, que foram à falência. Assim a Inglaterra obteve dividendos para financiar importações de matérias-primas essenciais para o que veio a ser conhecido tempos depois como a “Revolução Industrial”.
Mais políticas protecionistas essenciais foram reforçadas em 1721, com uma legislação levada a cabo pelo líder político Conde Robert Walpole, com amplo alcance, abrangendo a indústria manufatureira, subsidiando a exportação (dois anos antes proibiram emigração de trabalhadores qualificados ou mesmo trabalhos temporários por mais de 6 meses). Impuseram pesadas tarifas de importação para produtos estrangeiros, baixando as das importações de matérias-primas. Introduziu-se regulamentação de qualidade para as manufaturas. Tudo isso se manteve por mais de cem anos.
Em 1750 a Inglaterra proibiu exportações de ferramentas e componentes industriais de lã e seda, depois algodão e linho. Em 1785, com a Tool Act, proibiu-se exportações de várias maquinarias. Em 1820 a Inglaterra tinha taxa média de 50% sobre importações, a França tinha 20%, a Alemanha 8% e Suíça 12%. A Inglaterra havia proibido construção de novas oficinas de laminação e corte de aço nas colônias, forçando-lhes a se especializarem em barras de ferro bruto; proibiu importações de tecidos de algodão da Índia, proibiu exportações de roupas de lã de suas colônias para outros países, destruiu a indústria de lã irlandesa…
Os Navigation Acts, que restringiam o uso de navios não-ingleses no comércio marítimo, perduraram ao longo de todo o desenvolvimento técnico da indústria em torno das navegações até 1849, tendo sido defendido mesmo às custas de guerra contra a Holanda (Província Unida) no início da implementação dos Atos.
O maior dos economistas liberais austríacos (ironicamente, nunca tendo sido adepto da “escola austríaca”), o único mais amplamente citado em ambientes de discussão técnica, Joseph Schumpeter, demonstrou na obra “History of economic analysis” (pp. 370-371) que até por volta de 1800 prevaleciam de maneira geral práticas protecionistas no comércio exterior inglês, mantidas elevadas barreiras alfandegárias até 1840.
A grande abertura comercial só se deu concomitante ao poderio político sobre grande parte do globo, como Egito (onde Lord Acton determinou que se destruísse a indústria algodoeira), Península Indiana (onde chegaram a manietar tecelãs para prevalecerem contra a indústria têxtil local), Turquia, grande parte da África, indiretamente sobre a América Latina e depois com a sanguinária Guerra do Ópio na China (com a qual a Inglaterra mantinha grandes déficits comerciais). Essa perspectiva foi perfeitamente expressa por Halford Mackinder, líder político de direita e teórico da geopolítica que influenciou a estratégia internacional das potências mundiais, em um pronunciamento realizado em 1899 no “Institute of Bankers” conhecido como “The great trade routes“”.
Pequena Inglaterra… Em breve seria menos segura quando confrontada pelas forças militares, os recursos em rápido desenvolvimento de vastos territórios presentemente lhe permitiria construir grandes frotas. Não há outro curso aberto para nós do que ligar a Grã-Bretanha e suas colônias em uma liga de democracias defendida por uma marinha unida e um exército eficiente (…).
Não decorre daí que, junto com a descentralização [da produção e comércio], deva haver uma queda efetiva da atividade industrial em nossas ilhas, mas parece inevitável que haja uma queda relativa. Contudo, a câmara de compensação mundial tende, por sua própria natureza, a permanecer numa posição isolada, e essa câmara de compensação sempre estará onde houver a maior propriedade de capital.
Isso fornece a verdadeira chave da luta entre nossa política de livre-comércio e o protecionismo de outros países – somos, essencialmente, o povo que tem o capital, e quem tem capital sempre participa da atividade dos cérebros e músculos dos outros países.[1]
E… como vinha o financiamento para o capital?
O conhecimento a respeito desse fato é importantíssimo, porque na mitologia liberalista econômica, o desenvolvimento industrial no capitalismo se deveu basicamente a indivíduos diligentes que pouparam recursos com muito esforço e sacrifício, para então, com os frutos dessa poupança, investirem em fábricas, assumindo os riscos e criando riqueza. Esta retórica tem a função de reforçar a pregação do “darwinismo social” e promover ideias de que a melhoria da sociedade depende da existência da desigualdade, a qual possibilitaria, quando transbordando a riqueza do topo da pirâmide, uma melhora de vida de toda a sua base. Desta forma surge o mito de que a melhora de vida das pessoas na base é mérito de pessoas especiais, que devem ser veneradas em agradecimento.
Contudo, a história do que seria o “maior exemplo” de liberalismo desmistifica esses dogmas. Conforme o autor Giovanni Arrighi expõe:
Basta mencionar que, em 1783, os £9 milhões pagos anualmente pelo governo britânico para cobrir os juros e a amortização das dívidas absorveram nada menos do que 75% do orçamento e equivaleram a mais de ¼ do valor anual do comércio britânico. No entanto, entre 1792 e 1815, os gastos públicos da Grã Bretanha puderam ser aumentados quase seis vezes, de £22 milhões para £123 milhões, em parte mediante uma inflação interna indiretamente induzida, mas principalmente através de novos empréstimos, que em 1815 elevaram a soma anualmente requerida para o serviço da dívida para £30 milhões.
Como resultado desse aumento explosivo do endividamento e dos gastos públicos, a indústria britânica de bens de capital passou por uma expansão fenomenal. A indústria siderúrgica, em particular, adquiriu uma capacidade que ultrapassava em muito as necessidades dos tempos de paz, como demonstrou a depressão do pós-guerra em 1816-20. Todavia, a hiperexpansão criou condições para um novo crescimento futuro, dando aos siderurgistas britânicos incentivos ímpares para buscar novos usos para os produtos baratos que seus grandes fornos eram capazes de produzir. Essas oportunidades foram encontradas nos trilhos das vias férreas e nos navios de aço.[2]
A real função dos liberais nesse processo

Mas paira o questionamento: onde estava a corporação de economistas, filósofos e sociólogos do liberalismo econômico que abundavam na Inglaterra naquele tempo, durante todo este processo? Como não reconheceram essas feições como componentes indissociáveis do enriquecimento inglês?
Estavam cumprindo seu diligente papel, lutando para externalizar os custos sociais do capital e para impedir a qualquer custo que se firmasse na pauta pública a ideia de que o Estado também deveria fazer algo para as pessoas sem capital, já que a classe trabalhadora foi a base para o desenvolvimento do capitalismo industrial. Estavam sempre do outro lado quando trabalhadores e trabalhadoras lutavam por melhores condições de trabalho e remuneração, contra as leis que limitavam a jornada de trabalho diária a 10 horas, inclusive contra a redução da carga horária extenuante do trabalho das crianças nas tecelagens. Estavam do lado do Estado quando este cortou os programas assistenciais mínimos para os pobres, como na abolição do “Poor Law Reform“, terminando em 1824 com o programa de subvenção pública para os pobres e liquidando a assistência social monetária totalmente vinte e quatro anos depois. Cumpriam seu papel.
No cenário de hoje, empenham-se em voltar a classe média contra os mais pobres, jogando com a oportunidade dada da difícil tributação dos ricos, que manobram para isso usando os paraísos fiscais que os liberais econômicos defendem como estratégia para seu ardil.
Considerações Finais
O principal papel deste texto não é pregar que o modelo de gestão da Economia Nacional que soergueu o Império Britânico é “O Padrão” que deva ser imitado. Absolutamente não é esta a intenção. Nem mesmo pregar que há um. A principal implicação aqui é — muito mais do que desmontar as falácias dos liberalistas econômicos, reivindicando explicar o desenvolvimento capitalista — desnudar as manobras dos jogos retóricos deles com os quais buscam fazer vingar seu “darwinismo socioeconômico”. Não só mostrar que mentem, mas para quê mentem.
Na Inglaterra, nos fins do período vitoriano, quando, a despeito de controlar 40% das regiões no mundo impondo sua “globalização”, o ciclo de acumulação de capital inglês enfraquecia relativamente ao mundo. Liberais econômicos se insurgiram em grande militância e propaganda conclamando que deveria se desinibir os ricos com ideias de concessões de direitos aos pobres, porque seria por isso que as promessas de glória eterna estavam comprometidas no horizonte.
O principal gigante destes liberais ingleses de então foi Herbert Spencer. Sua obra propagandística “O homem contra o Estado”, de 1884, ressoou décadas mais tarde, servindo de base para o panfleto “O caminho da servidão”, de Hayek, escrito pelas mesmas motivações, interesses e mentalidade, recapitulando as ideias do inglês. Spencer escrevia as típicas crenças ecoadas pelos liberalistas:
“(…) o bem [-estar] popular acabou sendo buscado pelos liberais, não como um bem a ser conseguido indiretamente através de estímulos e desestímulos, mas como um fim a ser conseguido diretamente” (numa crítica aos liberais que estavam aceitando as concessões feitas aos pobres).
Spencer forneceu para Hayek a ideia da retórica de que políticas de bem-estar social implicam em socialismo, e este implica em escravidão:
(…)
Perdeu-se de vista a verdade de que antigamente o liberalismo se caracterizava pela defesa da liberdade individual contra a coação do Estado.
Instigante, não é? De fato, palavras que incitariam qualquer pessoa com espírito não conformista, afinal, é um apelo de forte conotação a luta da liberdade do indivíduo contra um Estado despótico. Mas os propósitos subjacentes, que dão o norte do que eles realmente têm em mente, uma hora aparecem sem máscara e polimentos:
“De outro lado, dos desgraçados, dos desconhecidos ou conhecidos muito vagamente, ignoram-se todos os seus deméritos; e assim, quando numa época como a nossa se pintam as misérias dos pobres, o público as representa como misérias a que se encontram submetidos os pobres virtuosos, em vez de lhes representar como misérias sofridas pelos pobres culpáveis, o que na maioria dos casos seria mais justo”.
Portanto, cuidado com esse tipo de discurso. Se a realidade mostra que para o crescimento do capital foi necessária uma mobilização de várias forças e relações sociais, afetando as relações de todos e cada um, os mais pobres têm todo o direito de exigir que haja uma lógica de redistribuição e justiça social com os recursos, “pois nenhum homem é uma ilha” e, se vivessem como eremitas, não haveria capitalismo.
Referências
[1] University of Colorado – The imperial vision of Halford Mackinder
[2] “O longo século XX” (p. 164).
Bibliografia
• SCHUMPETER, Joseph A. History of Economic Analysis. New York: Oxford,1954.
• ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. São Paulo: UNESP/Contraponto, 1996.
• CHANG, Ha-Joon. Chutando a Escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Editora UNESP, 2004
• CHANG, Ha-Joon. Maus samaritanos: o mito do livre-comércio e a história secreta do capitalismo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
• HOBSBAWN, Eric. Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. Forense Universitária, Rio de Janeiro. 1969.
• WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System, vol. III: The Second Era of Great Expansion of the Capitalist World-Economy, 1730s–1840s. San Diego: Academic Press, 1989.