Muito provavelmente você já viu uma foto assim nas intermináveis discussões políticas que acontecem na internet, principalmente em redes sociais como o Facebook:
De um lado, uma cidade cheia de luzes e prédios “bonitos” do centro financeiro de alguma megacidade, simbolizando a “glória” do capitalismo.
Do outro, uma favela, numa foto que realça as condições de miséria no local fotografado, como se exemplificasse um alegado empobrecimento generalizado causado pelo socialismo ou por outras políticas quaisquer de esquerda ou que a direita julga tratar-se de uma política de esquerda.
Essa estratégia, na verdade, é uma falácia, ainda que não seja hoje muito conhecida como tal: é a falácia das fotos localizadas.
No que consiste esse tipo de falácia?
A falácia das fotos localizadas costuma ser utilizada como se fosse um argumento bom e plausível, na tentativa de ilustrar e endossar argumentos de pessoas de direita defensoras do capitalismo.
Essa falácia consiste em comparar duas fotos: uma que favorece e “comprova” o ponto de vista do argumentador e outra que prova como a antítese desse ponto de vista é algo absurdo.
Ocorre, por exemplo, quando um defensor do capitalismo usa uma foto de um centro urbano esplendoroso, cheio de luzes, prédios e tecnologia avançada, como a downtown de Tóquio, e a contrasta com uma imagem de um local degradado, como uma favela de localização não determinada ou um beco deteriorado em Havana, capital de Cuba, rotulada como sendo de um “país socialista”.
Esse exemplo é usado para tentar argumentar que o capitalismo é “inquestionavelmente melhor”do que o socialismo. Afinal, segundo teorizam, cidades capitalistas seriam sempre belas, modernas e prósperas graças ao império do capital. Isso ao mesmo tempo em que cidades de países governados por políticos de esquerda seriam empobrecidas, antiquadas, malconservadas e decrépitas especificamente por estarem submetidos a um governo socialista.
Por que é uma falácia

Essa estratégia é falaciosa porque usa características bem localizadas, como se pudessem retratar todo o universo existente, respectivamente, de cidades capitalistas ou socialistas.
Essa é uma falácia já conhecida no meio acadêmico. É a chamada falácia cata-cereja, que usa dados esperta e cuidadosamente selecionados, como a foto noturna de um centro de uma megacidade capitalista contrastada com a de uma favela supostamente localizada na periferia de uma cidade de país “socialista”, para tentar endossar um determinado argumento, ignorando todas as evidências que lhes são contrárias.
A falácia ocorre aqui porque a foto do luminoso centro de megacidade corresponde a uma minoriada extensão territorial total dessa mesma cidade. Porém, mesmo o centro da cidade também é desigual e é na foto apenas uma paisagem que esconde lugares de vida e trabalho desiguais, contendo uma dinâmica de acumulação de riqueza e renda também desigual.
Em milhares de cidades situadas em países capitalistas ao redor do mundo, há bairros centrais ou periféricos bem cuidados, luminosos e “desenvolvidos” dividindo a extensão territorial municipal com locais, seja do próprio centro ou da periferia, maltratados pela ação do tempo e pela falta de revitalização.
Mesmo cidades que são tidas como foco do capitalismo globalizado, como Nova York, São Paulo, Londres, Tóquio, Roma, Pequim, Xangai, Berlim, Rio de Janeiro e Cidade do México, têm localidades padecendo com a carência de políticas públicas ou privadas de conservação e revitalização.
Por outro lado, há bairros bonitos e aparentemente prósperos em cidades de países considerados socialistas. O exemplo mais conhecido é Pyongyang, capital da Coreia do Norte, com bonitos edifícios na paisagem. E até certo ponto, é possível encontrar também fotos bonitas de cidades socialistas do passado, como Moscou na década de 70, quando era a capital da União Soviética, ostentando o padrão de “cidade moderna” da segunda metade do século 20, e uma foto bem tirada da noite de Havana.
No final das contas, tanto os países capitalistas como os “socialistas” possuem incontáveis contrastes entre locais belos e luminosos e regiões feias ou empobrecidas. E as fotos nada revelamsobre ambos os casos, exceto que em todos eles há desigualdade e seletividade nas políticas de gestão urbana e distribuição de renda.
Pelo contrário, é possível até usar essa estratégia para criticar o capitalismo, se eu tirar, por exemplo, uma foto da Avenida Paulista, em São Paulo, e colocá-la junto da imagem de uma favela da periferia da mesma cidade.
Na geografia é considerada a diferença entre paisagem e lugar, e os processos sócio-espaciais globais. O cerne da diferença é entre aparência, essência e totalidade em movimento. Logo, o conhecimento sobre o local que se retrata é muito mais amplo do que uma paisagem e um lugar específico, pois envolve as dinâmicas da divisão do trabalho e da sua interação na totalidade do globo. O saber restrito ao visível é puro empirismo positivista.
A falácia cata-cereja desnudada em 10 exemplos
1. Chile
2. Hong Kong
3. EUA
4. Cingapura
5. Emirados Árabes Unidos
6. Panamá
7. Irlanda
8. Coréia do Sul
9. Austrália
10. Japão
Considerações Finais
Essas questões de segregação urbana e como o ambiente urbano é construído no modo de produção capitalista , é um fenômeno que surgiu com o próprio capitalismo. Em todas as cidades de economia capitalista o espaço urbano sempre segue a lógica de segregação das camadas mais pobres, cujos bairros ficam sem infraestrutura e serviços, o que pode ser revertido caso haja investimento público em urbanização e habitação para a revitalização dessas áreas.
Usar fotos contrastantes entre bairros ricos bonitos e bairros pobres feios nada depõe a favor do capitalismo e das políticas de direita. Pelo contrário, pode até depor contra a ordem desigual e injusta que ambos impõem aos seres humanos.
Então, se você compara o luminoso centro de Nova York com o beco degradado de Havana, reveja o uso desse argumento. Ou então, prepare-se para ser confrontado com, digamos, fotos de regiões degradadas da periferia da mesma Nova York e bonitos cartões postais do centro de Havana, ou mesmo dos bairros de elite de Pyongyang.
Reflita se o capitalismo é tão difícil de se defender ao ponto em que você precisa usar artifícios falaciosos para mostrar como é “bom” um sistema que permite a existência de centros superurbanos e bairros de elite em contraste com favelas e outros bairros muito pobres e degradados.
Contribuição de Adriele Schons e Claudio R. Duarte.