Volodimir Iščenko, sociólogo e pesquisador do Centro de Estudos do Leste Europeu da Universidade Livre de Berlim (Freie Universität), é um dos maiores intelectuais da esquerda na Ucrânia. Ele se dedica há anos a temas-chave da sociedade local, como protestos e movimentos sociais, a revolução no Maidan de Kiev em 2014, nacionalismo, sociedade civil e a esquerda e direita política ucranianas. Ele já foi membro de várias iniciativas da nova esquerda ucraniana e um dos fundadores da revista de esquerda “Zajedničko: časopis za društvenu kritiku” (Zajedničko: Revista de crítica social). Suas análises e comentários foram publicados em importantes meios de comunicação mainstream e de esquerda, como The Guardian, Jacobin, New Left Review e LeftEast. Nas últimas semanas, devido à guerra na Ucrânia, ele tem aparecido frequentemente na mídia internacional e em diversos fóruns, desde a CNN e Intercept até discussões com nomes de destaque da esquerda ocidental, como Yanis Varoufakis ou Owen Jones.
O ataque russo à Ucrânia surpreendeu os analistas. Muitos afirmaram que era algo improvável porque a própria Rússia seria a maior prejudicada. Como você interpreta isso?
Havia muitas razões para a desconfiança em relação à possibilidade de ataque, principalmente devido aos enormes riscos militares, econômicos, políticos e geopolíticos envolvidos nessa ação. Vemos que Moscou poderia subestimar o exército ucraniano e que poderia haver erros no planejamento da operação militar, alguns soldados acreditavam que estavam indo para exercícios na Bielorussia e receberam ordens pouco antes do início do ataque. Além disso, embora a França e a Alemanha tivessem uma política um pouco diferente dos Estados Unidos antes da invasão, a União Europeia agora está impondo sanções mais duras do que os EUA. A invasão terá grande impacto na posição da Rússia no mundo e na situação política interna. Vladimir Putin arriscou tudo com essa jogada, portanto, uma derrota na Ucrânia provavelmente significaria a perda do poder para ele, talvez por meio de um golpe de estado dentro das elites existentes, ou até mesmo perder a vida. Não se pode excluir uma revolução, embora as chances sejam menores. Devido a todos esses riscos, muitos cientistas sociais e analistas de relações internacionais acreditavam que Putin apenas queria intimidar a Ucrânia e a OTAN, mas que não haveria ataque.
Plano de adesão à União Europeia
Existem várias teses sobre a motivação de Putin, desde questionar sua saúde mental, passando pelo messianismo imperialista e ameaças à OTAN, até a ideia de que a democrática Ucrânia supostamente ameaça a autocracia na própria Rússia. O que pensa a respeito?
Ainda não vi uma interpretação convincente. A ideia de que Putin enlouqueceu não é válida, pois, na minha opinião, ele não apresenta sintomas de loucura. Há também a explicação de que ele se tornou um fanático ideológico com uma missão messiânica de restaurar o Império Russo. No entanto, líderes com convicções ideológicas são muito atípicos na política pós-soviética. Todos os líderes pós-soviéticos eram cínicos pragmáticos que construíram regimes cleptocráticos, sem visões ideológicas. Mesmo que seja verdade que Putin se tornou um fanático ideológico, é um grande mistério como isso aconteceu, e são necessárias maiores explicações.
Mas, em 2021, Putin em seu ensaio ”Sobre a Unidade Histórica dos Russos e Ucranianos”, e ainda mais em discursos em que anunciava a guerra, apresentou razões imperialistas e chauvinistas claras, além de falar sobre “desnazificação” da Ucrânia. Ele negou o direito da Ucrânia à independência do Estado e na semana passada mencionou a possibilidade de seu desaparecimento. Os motivos ideológicos são claros?
A questão é se é apenas retórica para legitimar movimentos liderados por outras razões. Muitos hoje interpretarão seu ensaio da maneira que você mencionou. No entanto, nesse texto, ele não nega a independência ucraniana, mas sim uma forma específica de identidade ucraniana, que não é a única possível. Putin argumenta contra a Ucrânia baseada na identidade anti-russa. Em sua visão, a Ucrânia e a Rússia poderiam ser dois estados para “um e o mesmo povo”. Putin retorna à interpretação da era do Império Russo, quando russos, bielorrussos e ucranianos eram vistos como três ramos da mesma nação. Esse conceito foi suprimido durante a União Soviética, quando a posição oficial era que havia três nações e línguas diferentes, embora fossem povos irmãos de origem comum. Muitos ucranianos consideram essa interpretação uma negação de sua existência porque construíram sua identidade em oposição à Rússia, que é o “grande outro” para eles. Para muitos outros, especialmente aqueles socializados na URSS, os ucranianos não são necessariamente definidos em oposição aos russos. E mesmo depois do Euromaidan e do início da guerra em Donbass, a maioria dos ucranianos achava que eram povos irmãos, e, para 15-20% da população, era normal se sentir tanto ucraniano quanto russo. Mas a guerra atual pode apagar essas identidades ambíguas.
Em texto publicado no portal Left East, você disse que as declarações de que os ucranianos resistiriam ferozmente à invasão estavam exageradas, mas não é exatamente o que ocorre agora?
O texto se referia sobre a possibilidade da Rússia destruir o exército ucraniano e ocupar grande parte do território, o que ainda não ocorreu. A resistência é possivelmente mais forte do que a Rússia esperava. Mas provavelmente seria diferente se Kiev fosse ocupada dentro de 96 horas, como previsto pelo Pentágono. Muitos ucranianos estão se juntando à defesa territorial e ao exército, mas cerca de dois milhões de pessoas já se deslocaram, e segundo algumas estimativas, pode haver até dez milhões de refugiados. Ao mesmo tempo, nos municípios ocupados, como Herson ou Melitopolj, acontece exatamente o cenário que descrevi – protestos significativos contra a invasão russa , mas não há forte resistência armada. Se a Rússia ocupar grande parte do território, inicialmente a maioria da população provavelmente será passiva. A resistência armada não será forte o suficiente para derrubar a ocupação, mas poderá forçar Moscou a estabelecer um regime muito repressivo nas áreas ocupadas. A consequência pode ser uma resistência não armada mais forte, o que seria uma fonte de instabilidade constante não apenas na Ucrânia, mas também na Rússia.
O Ocidente reagiu de forma decisiva. A estratégia atual se baseia em duras sanções contra Moscou e na entrega de armas a Kiev. Tanto a destruição da economia russa quanto o fortalecimento da resistência ucraniana têm o mesmo objetivo – forçar Moscou a interromper o ataque. Como você vê isso e o que pensa sobre os apelos para que a OTAN estabeleça uma zona de exclusão aérea?
Receio que, se tudo permanecer em sanções e entrega de armas, isso significa que o Ocidente está realmente interessado nesta guerra. Putin não pode perder, então ele lutará na guerra pelo maior tempo possível. Isso significará um grande número de mortos e a destruição completa das cidades ucranianas. Como destruiu Grozny na Chechênia, o exército russo poderia destruir Kiev e Kharkiv. Se não tiver outras opções, Putin pode ameaçar com armas nucleares. Acho que as elites da OTAN entendem que uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia significaria uma guerra entre a OTAN e a Rússia. Acho que não podemos arriscar um apocalipse nuclear.
Parar a guerra é uma prioridade absoluta. Isso pode ser possível fornecendo imediatamente à Ucrânia uma perspectiva clara de adesão à UE, pelo menos um plano concreto de adesão. Ao mesmo tempo, um acordo sobre a neutralidade militar poderia ser alcançado. Seria mais fácil agora porque o presidente Volodymyr Zelensky e o resto da elite política estão desapontados com o fato da OTAN não ajudar a Ucrânia ou estabelecer uma zona de exclusão aérea. Zelensky deveria ser forçado a fazer concessões dolorosas em relação à Crimeia e ao Donbass. Mas, graças à adesão à UE, Zelenskiy poderia apresentar o acordo com a Rússia como uma vitória e afirmar que os ucranianos conseguiram o que vinham lutando desde a revolução no Maidan. Ao mesmo tempo, Putin também poderia alegar que não foi derrotado, mas que a invasão atingiu seus objetivos. A UE e os EUA deveriam negociar algo assim se quiserem evitar a perda de vidas ucranianas e a destruição da economia.
Promessas Irresponsáveis
O que quer dizer com o ocidente pode estar interessado nesta guerra?
Alguns comentaristas estão entusiasmados sobre como a resistência prolongada na Ucrânia desgastará a Rússia da mesma forma que a guerra no Afeganistão contribuiu para o colapso da União Soviética. Mas aquela guerra além de causar muitos danos à URSS, também significou um desastre para o povo afegão. O Afeganistão foi devastado por décadas e se transformou em um estado falido, e, no final, um movimento extremista assumiu. Se o Ocidente está satisfeito com esse futuro para a Ucrânia, isso significa que eles precisavam dessa guerra. A posição atual do Ocidente será justificada apenas se a Rússia for realmente tão frágil que entrará em colapso em um futuro muito próximo. No entanto, se ele puder continuar a invasão por meses ou até anos, o Ocidente se torna cúmplice no prolongamento da guerra.
A Ucrânia, portanto, não é apenas vítima da Rússia, mas também dos jogos geopolíticos do Ocidente?
A inteligência estadunidense e britânica vinha anunciando a invasão há meses. Se Londres e Washington tinham tanta certeza da invasão, por que não a impediram, por que não negociaram mais ativamente com Putin? Certamente, Putin é o maior responsável pela guerra. Mas o Ocidente sabia da invasão e não fez o suficiente para evitá-la.
O Ocidente alimentou as esperanças da Ucrânia na OTAN, embora estivesse claro que não defenderia a Ucrânia. Em certo sentido, os ucranianos foram enganados?
A Ucrânia nunca recebeu um Plano de Ação para adesão, tratava-se da possibilidade teórica de ingressar na OTAN um dia no futuro. Apesar de suas promessas, a OTAN nunca desejou lutar pela Ucrânia. Ucranianos estão morrendo agora. Para dizer o mínimo, tais promessas para a Ucrânia foram extremamente irresponsáveis.
Durante o tempo do presidente Petr Poroshenko, a adesão à OTAN foi incluída na constituição em 2019 como uma meta. Como a OTAN se tornou um tema chave da política ucraniana?
Os políticos nunca se interessaram pelo que os ucranianos realmente pensam sobre a OTAN. O pedido de adesão foi apresentado em 2004 após a Revolução Laranja pelo presidente Viktor Yushchenko. Isso foi apoiado pelo então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, então, em 2008, na cúpula de Bucareste, foi decidido que a Geórgia e a Ucrânia se juntariam à Aliança. Naquela época, cerca de 20% dos ucranianos apoiavam a adesão à OTAN. Depois de Euromaidan, a Rússia anexou a Crimeia e a guerra estourou em Donbass, então parte da população começou a ver a OTAN como proteção contra a Rússia. Ao mesmo tempo, as pesquisas não eram mais realizadas na Crimeia e no Donbass, as partes mais pró-russas do país. No ano passado, devido ao medo da escalada militar russa, o apoio à adesão à OTAN ultrapassou os 50 por cento. A atual invasão mudou as atitudes dos cidadãos até mesmo nas partes pró-Rússia do sul e leste do país. Ao mesmo tempo, cresce a desilusão com a Aliança.
Possíveis resultados da guerra incluem a divisão do país – onde um regime repressivo pró-Rússia seria imposto no leste, enquanto o oeste provavelmente se tornaria um posto avançado nacionalista da OTAN, a ocupação russa de toda a Ucrânia ou a derrota completa de Rússia. Certamente, a Ucrânia multinacional terá dificuldade em sobreviver?
Você descreveu um cenário possível no caso da divisão do país, mas tudo depende do andamento da guerra. A derrota de Putin provavelmente significaria a desestabilização e o colapso do regime governante russo, do qual a Ucrânia poderia tirar vantagem e até recuperar Donbass e a Crimeia. Como resultado do ataque e destruição, existe um enorme ódio contra os russos. Receio que a língua russa seja suprimida na esfera pública ainda mais do que era depois das leis aprovadas por Poroshenko. O país multicultural onde nasci provavelmente está perdido para sempre. É possível que um dia, em vez de ódio, haja reconciliação – a Polônia e a França dentro da UE cooperam estreitamente com a Alemanha, embora a Alemanha tenha causado enormes sofrimentos a toda a Europa na Segunda Guerra Mundial. Mas isso exigirá mudanças políticas muito sérias na própria Rússia.
Reorientação da Rússia
Mesmo antes da invasão, você escreveu que tal ato poderia desestabilizar a própria Rússia. Quais serão as consequências da guerra e das sanções para o regime de Putin?
Se o regime quiser se adaptar aos desafios militares, econômicos e políticos, serão necessárias mudanças radicais na ordem social e política. O estado russo atualmente funciona de acordo com o princípio do capitalismo de compadrio cleptocrático em que algumas elites enriquecem. No entanto, não será possível manter o regime pró-russo em partes da Ucrânia apenas por meio da repressão, e a resistência dos ucranianos pode encorajar a oposição na Bielo-Rússia e na Rússia, especialmente se soldados russos continuarem morrendo, inclusive no Cazaquistão, ou seja , toda a esfera de interesse russa. Como a instabilidade não será amenizada pela atual política neoliberal ortodoxa, o historiador econômico Adam Tooze questionou se o regime tentará implementar algum tipo de política neokeynesiana para melhorar a vida dos cidadãos, ou seja, comprar seu apoio. Para evitar a rebelião das massas que fizeram grandes sacrifícios nas guerras, após as duas guerras mundiais houve uma significativa expansão dos direitos dos trabalhadores.
A reorientação da Rússia para países não ocidentais também será um problema. Moscou está menos isolada do que se apresenta no Ocidente, mas para além de depender de uma China mais desenvolvida, tal reorientação não será fácil de conciliar com a identidade europeia de russos, bielorrussos e ucranianos. A Rússia também precisará de um projeto ideológico muito mais coerente que explique à população o propósito de todo o sofrimento. O fato de grande parte da sociedade russa não entender a invasão de Putin é um sintoma da ausência de tal projeto, que nenhuma das elites pós-soviéticas anteriores teve.
A invasão também confundiu a intelectualidade de esquerda, acostumada a culpar o Ocidente por quase todos os problemas mundiais. Os esquerdistas ucranianos Taras Bilous e Vladimir Artyukh criticaram esse “anti-imperialismo para idiotas” da esquerda ocidental em cartas abertas. Qual seria a perspectiva à esquerda correta?
Pessoalmente, muitas vezes escrevi contra interpretações simplistas do Euromaidan, que uma parte da esquerda ocidental erroneamente viu como um golpe apoiado pelo Ocidente, assim como as repúblicas separatistas no Donbass eram vistas como proto-socialistas, quando na realidade eram marionetes de um regime russo muito anti-socialista. Mas, neste ponto, a discussão sobre a culpa dos esquerdistas ocidentais como idiotas úteis de Putin é muito prejudicial para a esquerda. O debate sobre a subestimação do imperialismo russo é importante, mas não deve ser feito em momentos de intensas emoções e de chantagem moral.
Como consequência da invasão, haverá uma forte onda de direita que estreitará muito o espaço da esquerda na Europa Oriental e Ocidental. Não devemos nos desarmar e nos expor aos ataques da direita. A grande maioria da esquerda europeia condena o imperialismo russo e é claro para eles que a invasão leva ao desastre, assim como a invasão estadunidense do Iraque. A esquerda precisa de argumentos ofensivos. Não devemos concordar com a proibição de discussões sobre a cumplicidade da OTAN e o regime pós-Maidan na Ucrânia, sobre os motivos da não implementação dos acordos de Minsk ou sobre as relações entre a OTAN e a Rússia. Isso significaria capitulação, especialmente na Europa Oriental, onde na era do neocartismo que se aproxima, pode não ser mais possível apresentar argumentos básicos de esquerda sem ser acusado de ser um espião russo.
Entrevista publicada em 10 de março de 2022 no portal bósnio Novosti.