“As classes abastadas gozam da liberdade que lhes oferece o ócio em segurança; elas estão naturalmente menos propensas a ampliar a liberdade na sociedade do que aquelas que, por falta de rendas, têm de se contentar com um mínimo de liberdade. Isto é perfeitamente visível quando surge uma compulsão no sentido de uma distribuição mais justa da renda, do lazer e da segurança. Embora as restrições se apliquem a todos, os privilegiados tendem a ressentir-se, como se elas fossem dirigidas apenas contra eles. Eles falam em escravidão quando de fato se pretende apenas distribuir entre outros a liberdade de que eles mesmo gozam. É verdade que pode ocorrer inicialmente uma diminuição do seu lazer e da sua segurança e, portanto, da sua liberdade, para que seja elevado o nível da liberdade para todos. Todavia, uma tal mudança, a remodelação e a ampliação das liberdades, não deve servir de motivo para que se afirme que a nova situação é, necessariamente, menos livre do que a anterior”.
Karl Polanyi em “A Grande Transformação”.
Dos anos 1990 a uma boa parte do início dos anos 2000, o discurso “globalização” dominava a agenda do empreendimento social público. Os porta-vozes do novo status quo falavam da inutilidade da busca de se pautar políticas autodeterminadas por parte das sociedades e suas instituições de governo e representação, anunciando a era de uma “Nova Economia”.
Pregava-se que, enfim, as leis “naturais”, universais, da conformação econômica, tal qual “leis da natureza” estavam estabelecidas. E que, a partir daí, a meta passaria a ser pensar formas como as economias nacionais se ajustariam e formatariam de maneira a se sintonizarem com essa manifestação; à proporção que fizessem isso com mais competência, desencadeariam-se processos virtuosos e inatos de ajustamento para uma “Terra plana” da utopia do desenvolvimento. A todos esta utopia estava aberta, desde que fizessem “a lição de casa”.
O passo crucial e mais importante para que isso ocorresse estava na integração econômico-financeira. Seria o ajustamento vital para com as leis universais e essenciais da economia. Estaria intimamente associada com o aperfeiçoamento institucional das sociedades para a harmonização com o “desenvolvimento”.
O presente autor deve confessar que nutre, de certa forma, até uma certa nostalgia com o nível do debate de pouco mais de vinte anos atrás. Quando nomes como Francis Fukuyama, Jeffrey Sachs, etc., estavam na “crista da onda” da linha de frente da direita e centro direita, inclusive servindo como pontes de afinidade com o centro político. Nunca se imaginou que sentiríamos saudades de encarar de frente o peso das obras de Fukuyama, diante da ideologia cada vez mais bitolada e monomaníaca que dá o tom nas direitas hoje…
Porém, é necessário fazermos um balanço desses discursos nos anos 1990. Eles possuem múltiplas faces, como o das privatizações que se realizaram em massa, o apogeu global das privatizações. Mas aqui iremos focar no pilar central. A globalização financeira de fato era o que seus apologistas diziam? As leis que ela impunha realmente possibilitariam o acesso universal ao desenvolvimento? Cada trabalhador seria também, pelo menos, um “capitalista de menor escala”?
A realidade “refutou” todas as previsões dos defensores da Globalização

Comecemos por nos aproximar do que se constatou decorrida a década marcada pela drástica emergência da liberalização financeira, se sacramentado o discurso da “globalização” e “nova economia”, a década de 1990.[1]
Em 1997, despontou uma primeira pesquisa avaliativa de vulto. Nela o autor analisou 56 países entre 1950 e 1994, distinguindo sete categorias de medidas estatais que impactam no mercado financeiro. Quatro seriam restrições de contas-corrente, duas seriam restrições de contas de capital e por fim uma seria atuações em bloco, em acordos internacionais que restringissem a capacidade de um país gerir os fluxos de câmbio e capital. Codificou-se em estratos que expressassem níveis de intensidade de intervenções no mercado financeiro, com procedimentos de equalização de discrepâncias estatísticas. Uma metodologia própria que foi muito elogiada à época.
Neste estudo se constatou uma correlação positiva no nível geral de crescimento dos países com a liberalização financeira, com a explicação de que isso se devia às melhorias nas instituições. Mas revisões posteriores constataram um viés: os níveis gerais, examinando-se também as configurações institucionais, eram puxados por países já de renda mais alta. Em 2001, um estudo constatou que, empregando as medidas da pesquisa, a liberalização teve correlação positiva com o crescimento em países de renda alta, contudo, negativa em países de renda baixa, ou seja, havia uma distorção estatística.[2]
Em 1998, outro estudo foi produzido por um economista de renome que até então destacava-se como uma das maiores vozes em prol do “Consenso de Washington”. Se tornou por muitos anos o estudo mais amplamente discutido sobre correlação de liberalização de contas de capitais e crescimento econômico. Focou-se em dados de cerca de 100 países, empregando medidas de indicadores elaborados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre restrições no mercado financeiro, averiguando também indicadores institucionais além da evolução da renda per capita. Não encontrou associação entre a abertura no fluxo de capitais e o crescimento, passando a questionar se a liberalização dos fluxos financeiros favorecem o desenvolvimento econômico.[3]
Outro estudo, no mesmo ano, testando os efeitos da liberalização das contas de capitais, considerando a “qualidade” das instituições correlatas, apresentou resultados também nada encorajadores: a interação da qualidade das políticas e das instituições com abertura financeira quase nunca se apresentou significativamente positiva, mas, por vezes, significativamente negativa. O pesquisador mediu o nível de restrição das atividades dos bancos, a média ponderada dos déficits fiscais e da inflação, dos prêmios nos mercados paralelos, dos índices de corrupção e da qualidade da burocracia.[4]
Alguns anos mais tarde, bem no início da nova década (e século, e milênio), uma equipe de economistas testou a interação entre o nível de abertura das contas de capitais com os passivos líquidos do sistema financeiro como medida de solidez financeira com o “Índice de Lei e Ordem” do International Country Risk Guide’s, como medida de desenvolvimento institucional. Novamente, os resultados encontrados foram em grande parte negativos. Não apareceram evidências suficientes de que os efeitos do crescimento da abertura da contas de capitais correlacionam-se significativamente com o nível de desenvolvimento financeiro e institucional de um país. Juntamente com outros estudos parecidos, entre 1998 e 1999, não encontraram poucos indícios de que aberturas financeiras fizeram mais do que estimular crescimento econômico apenas em países de alta renda.[5]
E a blindagem ideológica aos poucos foi se enfraquecendo. Com um grande acúmulo de dados para uma seção transversal de países, dois pesquisadores descobriram que medidas de controles de capitais conseguiram reduzir a parcela da carteira e os fluxos de capital de curto prazo no montante de influxos totais, diminuindo a vulnerabilidade à especulação, enquanto aumentaram a participação do investimento estrangeiro direto ao mesmo tempo deixando o volume total de entradas de capital inalterado.[6]
A análise transversal de dados de políticas de afrouxamento de controles de capital na Europa, após a implementação do Ato Único Europeu, já havia mostrado que tais medidas tornaram o realinhamento das moedas do Mercado Comum Europeu mais difícil, permitindo a acumulação de problemas de assimetrias de competitividade, expondo governos e bancos centrais a pressões especulativas e culminando na crise de 1992.[7]
Mas a lição mais dura ainda estava por vir. Muitos países do Leste Asiático experimentaram uma ascensão na hierarquia econômica do Sistema Mundial, tendo o Japão já vindo de décadas como o segundo elo funcional na reciclagem de excedentes mundiais, junto com a Alemanha. Nos meados dos anos 1980, os EUA desvalorizaram o dólar, e as moedas de ambos, Alemanha e Japão, se valorizaram. Com a queda nos lucros industriais no Japão, houve acordos de instalações de plantas produtivas nos países do sudeste asiático, de onde podiam exportar sem as barreiras que os EUA impunham às importações japonesas. Lá o perfil produtivo avançava, não se esgotando em produtos do circuito periférico da economia mundial, dada a educação técnica ampla e relativamente igualitária no alcance, bem como estrutura empresarial ociosa, mas não destruída, herdada dos tempos pré-coloniais e coloniais, além de posições geográficas estratégicas, como o papel de Singapura no estreito de Málaca.
Mas eles passaram a “apanhar” não apenas de think tanks neoliberais com sua pregação contra o “dirigismo estatal” ou o “capitalismo de Estado” afrontando o “liberalismo”. O FMI e o Departamento do Tesouro dos EUA lhes pressionaram a liberalizar os mercados financeiros e de capitais nos anos 1990, mesmo tendo taxas de poupança maiores do que 30%. Começaram a ficar cada vez mais expostos, tornando-se alvos dos capitais de curto prazo que subiam em proporção aos investimentos produtivos, criando bolhas imobiliárias inauditas em alguns deles.
Aumentava avassaladoramente a alavancagem das apostas dos bancos. Eles “reciclavam” as moedas, inclusive depositárias, convertendo em dólares e promovendo as fugas de capitais no mercado offshore. Acabou explodindo a Crise Asiática, a qual foi contornada com séries de políticas de controles nos fluxos de capitais e taxas de câmbio, além de acúmulos de reservas internacionais (e variados estímulos setoriais), diminuindo a flutuação da economia e a vulnerabilidade das contas externas. Na época, os EUA recuaram num acordo de “livre comércio” com Singapura por causa disto.[8]
Em um estudo que se desenvolvia enquanto irrompeu a Grande Recessão, os autores tiram leite de pedra para encontrar indícios de efeitos da liberalização financeira no crescimento de alguns países. Mas, no final, apontam que tais indícios são inconclusivos macroeconomicamente, embora, por princípio, seriam positivos microeconomicamente, segundo os preceitos da microeconomia ortodoxa. O pulo do gato encontra-se mais adiante: admitem o fracasso da pesquisa econométrica em encontrar os efeitos positivos que a doutrina preconiza que DEVEM ocorrer com a liberalização financeira; como não havia disposição de repensar os preceitos do paradigma, apelam dizendo que ainda haveria espaço para defender efeitos indiretos institucionais.[9]
Após alguns anos de reflexão e maturação dos impactos da Grande Recessão e o crivo a que ela submeteu as receitas anteriores, um amplo e vasto estudo — sempre enfatizando, dentro do bojo do mainstream global dos analistas das políticas econômicas — concluiu que não se sustentaria mais a apologia da liberalização sob a crença nos mercados financeiros como eficientes, dado o balanço de anos de acúmulo de pesquisas orientadas para tal. Haveria assim a necessidade de se convencionar internacionalmente políticas de regulamentação.[10]
E em relação à pequena “Era do Cassino” e o emprego? O Relatório da Organização Internacional do Trabalho (ILO) sobre as Tendências Mundiais do Emprego, publicado em 2009 (confira as figuras gráficas das páginas 11, 12 e 13)[11], apresentou dados evidenciando que a tendência de queda no nível de desemprego só se reverteu e deu lugar a uma queda expressiva a partir de 2003 até 2007 (período de expansão na América Latina), novamente sofrendo um influxo. Neste relatório se estratificaram blocos de ocupações no tratamento e regiões. A tendência global de desemprego aumentou, com o “saldo” de realocações de atividades sendo negativo. A tendência foi menos positiva nos EUA e menos ainda no Leste Asiático, e mais acentuada na América Latina e África.
E o Brasil?
Quatro pesquisadores e pesquisadoras da Universidade Federal de Goiás realizaram um estudo analisando as relações entre ondas de liberalização do mercado financeiro no Brasil e a performance das variáveis “crescimento econômico”, “taxas de juros” e “inflação” no período de 1999 (quando implementa-se o chamado “tripé macroeconômico” – câmbio flutuante, regime de metas de inflação e metas fiscais) a 2014 [12].
O período de análise foi determinado de modo a investigar um intervalo de tempo homogêneo no que diz respeito à moeda utilizada e regime de câmbio adotado.
Valeram-se de instrumentos estatísticos para captar o que poderia haver de evolução interdependente das séries temporais dessas variáveis e os parâmetros probabilísticos das tendências.
Por meio dos métodos econométricos apresentados, é possível inferir que os potenciais benefícios da liberalização, como maior crescimento econômico, estabilidade de preços e redução da taxa de juros, não se verificaram no caso brasileiro. As análises como um todo sugerem que a abertura financeira no período analisado, em geral, não proporciona um melhor desempenho macroeconômico do país. Os principais argumentos pró-liberalização não puderam ser corroborados por este trabalho.
O escrutínio a que se submeteu o pressuposto de que a abertura de mercado financeiro é fator para o chamado “desenvolvimento econômico” é significativamente vital diante de retóricas de apologetas que consideram que “O Mercado” deve pautar os rumos políticos do país e se sobrepor aos princípios e caminhos democráticos. O exame do caso brasileiro ilustra a discussão geral abordada anteriormente nesta reflexão.
As evidências empíricas obtidas no âmbito deste estudo sugerem que uma maior abertura financeira não estimula uma melhora na performance econômica brasileira no período analisado. Nenhuma das variáveis analisadas demonstra uma relação positiva robusta e de longo prazo diante um aumento no grau de mobilidade de capitais. Nesse sentido, identificou-se que uma ampliação no grau de abertura financeira não evidencia a geração de benefícios através de maior crescimento econômico ou maior estabilidade financeira.
O que representa de fato a Globalização?

Lobistas da ideologia do “darwinismo socioeconômico” recrudesceram e ampliaram a militância após o sinal de ocaso que adveio em 2008. Gatos escaldados investem com ímpeto, dado o fracasso que a cortina de fumaça “liberalista” sofreu após as grandes crises provocadas por ela no Pânico de 1873 e a recessão até 1892, mais ainda, após a Grande Depressão de 1929. O discurso de defesa deles gravita em semelhança a como se uma pessoa gripada deixasse a gripe ir avançando de estágio, se expondo a choques térmicos, poeira, etc. e, quando os sintomas fossem dando o contorno de uma moléstia crônica, a pessoa tomasse uma colher de mel; não adiantando, alguém diz: “viu, foi combater a gripe, mas a culpa foi do mel”.
É importante não jogar com as cartas que estes lobistas distribuem. Nem atravessar o baralho para o parceiro. Esta conjuntura atual foi agravada pelos dogmas liberalistas sobre “autorregulação dos mercados”, pela retomada da ideia da emancipação da economia ante a racionalidade social e sua imersão institucional e política. Mas é muito mais profunda do que uma “crise de desregulamentação”, e não será “solucionada” meramente por medidas técnicas.
Um dos maiores gigantes intelectuais do estudo da história, o historiador francês Fernand Braudel, subverte as noções do debate convencional sobre a relação de sociedade, mercado e Estado no sistema capitalista. Com seu legado intelectual, pode-se perceber que o discurso de “liberalismo econômico x intervencionismo” é uma cortina de fumaça:
“Por isso observei longamente, descrevi e fiz renascer os mercados elementares ao meu alcance. Eles marcam uma fronteira, um limite inferior da economia. Tudo o que ficar fora do mercado só tem um valor de uso, tudo o que transpuser a porta estreita e ingressar no mercado adquire um valor de troca. Segundo se encontra de um lado ou do outro do mercado elementar, o indivíduo, o ‘agente’, está ou não incluído na troca, no que chamei a vida econômica, para opô-la à vida material; e também para distingui-lo — mas essa discussão ficará para mais tarde — do capitalismo.”
Em “A Dinâmica do Capitalismo”.[13]
Na sua clássica e colossal obra “Civilização Material, Economia e Capitalismo”, Braudel expõe que a vida socioeconômica no capitalismo desdobra-se em três esferas de ações, os convencionalmente chamados “três andares”. Na base, estaria a “vida material” , “a massa profunda da água”, a “que os preços do mercado tocam mas não penetram e nem sempre agitam”; as atividades cotidianas, habituais, introjetadas, nas quais a relação predominante do homem com as coisas é orientada pelo seu valor de uso.
O andar intermediário é o da “economia de mercado” o das trocas frequentes para a produção para o mercado além da troca de excedente do auto-consumo, com as ações voltadas para o valor de troca das coisas. Há neste andar ainda dois níveis; o inferior é composto pelos mercados, lojas, feiras simples e vendedores ambulantes; um superior, formado pelas feiras complexas, bolsas, pelo “engolimento” dos mercados locais pelos mercados nacionais, onde o volume transacionado e a complexidade institucional são maiores e mais acirrada é a “lei do valor”.[14]
É no Terceiro Andar que está a mola motora, a essência, o que é capitalismo. “[…] acima e não abaixo da vasta superfície dos mercados, ergueram-se hierarquias sociais ativas: falseiam a troca em proveito próprio, fazem vacilar a ordem estabelecida; voluntária e até involuntariamente, criam anomalias, turbulências […] Foi assim que grupos de atores privilegiados entraram em circuitos e cálculos que a maioria das pessoas ignora”.
Há, neste âmbito, “uma troca terra-a-terra, concorrencial, pela sua transparência; outra, superior, sofisticada, dominante. Não são os mesmos mecanismos, nem os mesmos agentes, que regem estes dois tipos de atividade, e, aliás, não é o primeiro, mas sim o segundo que constitui a esfera do capitalismo. […] Acima da massa imensa da vida material de todos os dias, a economia de mercado estendeu suas malhas e manteve em vida suas diversas redes. E foi, habitualmente, acima da economia de mercado propriamente dita que o capitalismo prosperou.”
O jogo sujo, o segredo do capitalismo: dominando a “vida material” das sociedades e instrumentalizando, para isso, o mercado, mecanismos externalizam dos capitalistas — enquanto funcionais na dinâmica de acumulação e inversão de grandes capitais — para a sociedade, custos e riscos; externalização sem a qual não conseguiriam os lucros econômicos capitalistas, os lucros extraordinários acima das taxas de lucros médios (pois capitalismo não vive de lucro contábil). “Confirmo-me assim na minha opinião, à qual aderi pessoal e lentamente, a saber: o capitalismo deriva, por excelência, das atividades econômicas desenvolvidas na cúpula ou que tendem para a cúpula. Por conseguinte, esse, capitalismo de alto voo flutua sobre a dupla espessura subjacente da vida material e da economia coerente do mercado, representa a zona de alto lucro. […] Na realidade, tudo é transportado nas costas enormes da vida material”.
Considerações finais

Braudel debruçou-se sobre as dinâmicas econômicas das forças de mercado e as forças de acumulação de capital. Ele investigou fenômenos que constituíam-se tendências, a partir de paralelos e nexos analisados nas cidades-estado italianas do período renascentista; após, nas Províncias Unidas — culminando na independência do reino espanhol —, onde hoje são os Países Baixos. Apontava que, prosseguindo períodos de intensa produção e conseguinte acumulação de capital, advinha uma grande competição pelas fontes de matérias-primas, entrepostos comerciais e daí pelo próprio capital, além da diminuição da margem de lucro média; os grandes capitalistas buscavam fontes seguras através do setor financeiro. A competição se acirrando traz insegurança pelas fontes de lucro e nivela-o também.
“No século XVII, Amsterdã dominará brilhantemente, por sua vez, os circuitos do crédito europeu e a experiência se saldará, também desta vez, por um fracasso no século seguinte. Só no século XIX, depois de 1830–1860, o capitalismo financeiro verá seus esforços coroados de êxito, quando a banca se apossará de tudo, da indústria e depois da mercadoria, e a economia em geral terá adquirido suficiente vigor para sustentar definitivamente essa construção. […] Não creio que Josef Schumpeter tenha razão em fazer do empresário o deus ex machina. Acredito obstinadamente que é o movimento de conjunto o fator determinante e que todo o capitalismo é comensurável, em primeiro lugar, com as economias que lhe são subjacentes.”
Em “A Dinâmica do Capitalismo”.
A dinamização da economia ancora-se na fonte de lucros que se dá no setor produtivo, que é o que emana das forças produtivas conjuntas que operam na esfera das trocas. Ela “paira” na esfera financeira à espera de novas oportunidades de inversões produtivas, com a importância da inovação tecnológica como fonte de aberturas de novas frentes para estas inversões. Ao mesmo tempo que se promove a inversão anterior para a esfera financeira, os capitalistas permanecem atentos a estas novas frentes, pois muitas vezes os pioneiros a descobri-las e investir conseguirão monopólios relativos (inclusive intra-mercado, com externalizações de rede, retornos crescentes à escala, controles nos fluxo de estoques, integrações) por um tempo suficiente para abranger mais frentes, consolidar ou até mesmo possibilitar estarem com a hegemonia em frentes subsequentes.
Em fases de afunilamento no leque geral de taxas de lucros extraordinários, capitalistas permanecem por um tempo maior com seu capital na esfera das finanças. Essa esfera financeira desenvolve um lapso maior com a produtiva. Sinais econômicos como os juros, relações entre moedas e destas com seus lastros passam a ser cada vez menos correspondentes com a atividade concreta da economia real. Braudel usou uma metáfora para sinalizar estes períodos, como “outonos” do capitalismo.
Aumenta-se incrivelmente a complexidade do circuito financeiro. Mecanismos de comunicação se sofisticam de forma a possibilitar transações astronômicas comprimindo o espaço-tempo. A esfera financeira amplia o portfólio, instrumentos de geração de lucros extraordinários em seu próprio circuito, de forma cada vez mais retroalimentante. Como nos anos 1990, acreditava-se que isso era uma “nova Economia”, que iria obrigar a uma nova forma de conceber-se a economia real, em que esta tinha que aceitar sua nova condição.
“Se, de ordinário, não se distingue capitalismo e economia de mercado, e porque um e outra progrediram na mesma cadência, da Idade Média aos nossos dias, e por que se apresentou freqüentemente o capitalismo como o motor ou o apogeu do progresso econômico. Na realidade, tudo e transportado nas costas enormes da vida material: ela incha, tudo avança rapidamente; a própria economia de mercado incha às suas custas e num abrir e fechar de olhos, amplia suas ligações.”
Todavia, essa desconexão, da lógica pura de mercado, não é algo próprio à realidade, não é nem mesmo uma nova realidade, mas um capricho que brinca com a realidade até quando pode; a confiança é uma ficção embriagada. Na verdade o mercado nunca esteve “deixado a si mesmo”, “autorregulado”: estava concebido num esquema para pairar sobre seus condicionantes sociais, geográficos e sócioecológicos. Permanece hoje ainda o excesso de liquidez girando sobre si mesmo como num carrossel que se autoalimenta.
E o grande conflito neste ponto: sobre quem se reerguerá uma “Nova Economia”…
Referências
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[2]
• QUINN, Dennis P. (1997), “The Correlates of Changes in International Financial Regulation,” American Political Science Review 91, pp. 531-551.
• Edwards, Sebastian – “Capital Flows and Economic Performance: Are Emerging Economies Different?” NBER Working Paper no. 8076 (January – 2001)
• ________ – Capital Mobility, Capital Controls, and Globalization in the Twenty-First Century
[3] RODRIK, Dani – WHO NEEDS CAPITAL-ACCOUNT CONVERTIBILITY? (PDF)
[4] KRAAY, Aart (1998), “In Search of the Macroeconomic Effects of Capital Account Liberalization,” unpublished manuscript, The World Bank (October).
[5]
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• EICHENGREEN, Barry; MUSSA, Michael; DELL’ARICCIA, Giovanni; DETRAGIACHE, Enrica; MILESI-FERRETTI, Gian Maria; TWEEDIE, Andrew – Capital Account Liberalization: Theoretical and Practical Aspects, IMF Occasional Paper no. 172 (August – 1998).
• WYPLOSZ, Charles – “Financial Restraints and Liberalization in Postwar Europe,” unpublished manuscript, Graduate Institute of International Studies, Geneva (January – 1999).
[6] REINHART, Montiel; REINHART, Peter; REINHART, Carmen – “Do Capital Controls and Macroeconomic Policies Influence the Volume and Composition of Capital Flows? Evidence from the 1990s,” Journal of International Money and Finance, 18, pp. 619-635 (1999).
[7] EICHENGREEN, Barry; WYPLOSZ, Charles (1993) – “The Unstable EMS,” Brookings Papers on Economic Activity 1, pp.51-144.
[8]
• FURMAN, Jason; STIGLITZ, Joseph (1998) – “Economic Crises: Evidence and Insights from East 37 Asia,” Brookings Papers on Economic Activity 2, pp.1-136.
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• M. AYHAN KOSE, ESWAR PRASAD, KENNETH ROGOFF, and SHANG-JIN WEI – Financial Globalization: A Reappraisal (PDF)
[10] Jeanne et al. 2012. “Who Needs to Open the Capital Account?” Washington, DC: Peterson Institute.
[11] ILO – Global Employment Trends (Janeiro 2009) (PDF)
[12] Pereira, Antonielle D’Lean; Meyrelles Filho, Sérgio Fornazier; de Queiroz, Antonio Marcos; Queiroz, Sabrina Faria. Evidências empíricas da relação entre o grau de mobilidade de capitais e performance macroeconômica no Brasil no período de 1999-2014
[13] BRAUDEL, Ferdinand – A Dinâmica do Capitalismo (PDF)
[14] BRAUDEL, Ferdinand – Civilizaçao Material, Economia E Capitalismo, V.2: OS JOGOS DAS TROCAS