É cada vez mais comum nos debates políticos que vemos por aí a comparação de países e economias nacionais para disputar, no vale-tudo, qual ideologia fechada e dogmática explica a posição deles num ranking comparativo de um parâmetro geral. Algo estranho, quando há poucos anos a moda era falar da “globalização” e interdependência de países.
O ponto fundamental para o que vamos chamar a atenção de que muitas vezes a discussão de quem está mais certo ou errado na melhor explicação, seja da direita à esquerda, é em si um foco errado. Não apenas porque geralmente todos os lados fazem vistas-grossas ou sobrestimam determinado fator quando convêm. Essa forma de pensar, baseando-se numa “análise” superficial e apaixonada sobre o que trouxe desenvolvimento ou não para determinado país nos leva inevitavelmente ao erro e nos faz cair na “vontade de crer”.
Na verdade os Estados e as Economias Nacionais são elementos funcionais de um sistema maior, estão inseridos num processo maior, para o qual regiões, circunstâncias e processos variáveis são mais ou menos aproveitáveis para a dinâmica do “todo”.
Para ajudar a ficar mais claro, das possíveis formas de elucidar como o procedimento que criticamos é desfocado, vamos lidar aqui com um caso concreto e muito especialmente ilustrativo: a Alemanha.
De vez em quando vemos um grupo obscuro dizer que o motivo da recuperação econômica e retomada do desenvolvimento da Alemanha no pós-guerra foi por este país ter seguido uma ideologia de centro-direita chamada “ordoliberalismo”, que combina livre-mercado com distributivismo social. Essa afirmação é embasada em declarações de quadros do Partido Democrata Cristão, o mesmo da Angela Merkel. Mas uma figura histórica chave para a ideia dos ordoliberais é o notável economista liberal-social Ludwig Erhardt, sobre o qual falaremos mais adiante.
Esse discurso ideológico de cara ignora que a Alemanha, em termos comparativos, chegou entre os primeiros do ranking do núcleo mundial a partir da década de 70, quando o SPD, o partido social-democrata alemão, ascendeu ao governo. E quanto mais estudamos os reais fatores que reergueram a Alemanha dos escombros da Segunda Guerra Mundial, mais fica claro que os argumentos desse discurso são falsos, cuja única sustentação é um raciocínio circular, que conclui um argumento já partindo do princípio de que estava certo antes de tentar demonstrá-lo, ou seja, a velha falácia da petição de princípio.
“Calote” da dívida foi o primeiro passo dado pela a Alemanha para se reerguer

Mencionamos um fato encaixando-o em uma pergunta: como o perdão da dívida alemã [1] no começo dos anos 50, equivalente a 400% do seu PIB de então, se encaixa na apologia liberal-econômica (o liberalismo político não necessariamente é econômico e vice-versa)? Os (neo)liberais sequer consideram válido o argumento da dívida odiosa e nem cogitam a possibilidade de uma auditoria da dívida pública brasileira, que dirá um “calote” equivalente 400% do PIB…
Definitivamente o primeiro passo dado pela a Alemanha para reestruturar sua economia não se encaixa na agenda (neo)liberal. Pelo contrário, é repudiado, de acordo com o princípio do “risco moral”, o qual diz que tal perdão faria o país ficar indisciplinado e irresponsável. Boa parte dessa dívida ainda era resquício da Primeira Guerra. Isso seria um “detalhe”? Algo não relevante? Numa situação bem menos grave, imagine o que os nossos (neo)liberais diriam se hoje a dívida brasileira fosse igualmente abonada em dois terços? Mas não, não dá pra imaginar hoje, posto que estamos falando de dívida externa, o Brasil é credor em moeda estrangeira. A dívida externa é mais grave, sendo que uma coisa é o país ter que arcar com passivos na moeda que cria ao gastar, outra coisa é em moeda estrangeira mais forte.

Até 1947 havia racionamento de alimentos e carvão na Alemanha. Sua população sofria com a pobreza, chegando a ser comum mortes causadas pela fome e pelo frio. (A Alemanha conseguiu reduzir sua pobreza apenas anos mais tarde, com a consolidação do Estado Social, principalmente por meio de suas políticas de transferência de renda [2]). Ainda no mesmo ano, diante da situação de calamidade generalizada no país, as autoridades implementaram a política chamada “Revised Level for Industrial Plan”[3], visando alavancar a metalurgia, a indústria de química e de maquinário para níveis de 1936.
Em 1948 a Alemanha recebeu 540 milhões de dólares em ajuda (mais de 5 bilhões de dólares em valores corrigidos [4]), um ano depois, 440 milhões, e em 1950, mais 500 milhões de dólares. Não apenas para financiar a indústria, mas também para estabilizar sua moeda. Somou-se a isto a ajuda para o fundo de compensação do Programa de Reconstrução, que era gerido em separado do orçamento alemão, e usado em empréstimos de longo prazo com juros subsidiados para médias e pequenas empresas. Em 1949 a Constituição instituiu o “Estado Social” como “princípio inalterável da ordem democrática”. Foi assim que finalmente, em 1952, o país passa a ter superávit comercial, ao mesmo tempo que começara com um dos mais altos níveis de gastos sociais do mundo.
Com esse perdão de dois terços da dívida, o PIB do país pôde dobrar em dez anos. Mesmo com o país já tendo iniciado a recuperação econômica como relatamos (mas ao contrário do que os (neo)liberais dizem, as condições de vida ainda eram miseráveis [5]), a dívida vinha se acumulando e lhe estrangulara já neste ponto.
O terço restante da dívida foi renegociado em condições plenamente favoráveis; não era mais em moedas estrangeiras, mas nacional – aliviando o peso das correções monetárias e o risco de insolvência-, juros abaixo do mercado e adaptáveis ao crescimento do PIB e as amortizações eram limitadas anualmente a 5% do valor das exportações.
Imaginem isso hoje a qualquer país “em desenvolvimento”?
A política econômica dos liberais foi um desastre e o Estado teve que retomar as rédeas da economia
Na Alemanha o governo controlava os preços do aço e carvão, transportes e moradia, até que houve uma reforma monetária aberta formulada pelo liberal Ludwig Erhardt, que preconizava a liberalização econômica e a formação dos preços conforme o jogo de oferta e demanda do mercado. Como resultado, os comerciantes começaram a especular a partir do anúncio da reforma, estocando bens e itens para serem vendidos apenas quando a moeda estivesse mais valorizada.
A abolição do controle de preços pelo liberal Erhardt – exceto o de salários, cujo arrocho foi derrotado devido à pressão dos sindicatos – teve mais consequências: disparou a inflação devido à escassez de matérias-primas, assim como fez explodir o desemprego devido às demissões em massa por parte das empresas que quebravam com a abertura econômica. Ironicamente o governo alemão teve que adotar um procedimento antiliberal para salvar o plano econômico liberal da inflação e mercados paralelos: regular novamente a economia, a partir do início de 1948, proibindo estocagem de bens não registrados, sob peso de fortíssimas multas e cadeia.
A Alemanha volta a adotar políticas intervencionistas e usa o seu “BNDES” para investir nas empresas alemãs
Outra questão silenciada pelos defensores do livre mercado no desenvolvimento alemão, é quando o seu “herói” Konrad Adenauer (primeiro chanceler da Alemanha Ocidental, um conservador esclarecido), no começo da década de 50, desautoriza Ludwig Erhardt e retoma diversas restrições à importação – em todos os itens considerados “não essenciais” – para conter o déficit comercial. Ou seja, mais uma vez a Alemanha volta a proteger sua indústria com um forte protecionismo.
Essas medidas nos levam a alguns questionamentos. Sabendo que a circulação de capitais à época não tem resquício de sombra com a realidade dos anos 90 adiante, não havendo o acúmulo de liquidez circulando mundo afora (que começou a bombar a partir da segunda metade dos anos 70, com o dinheiro dos petrodólares), e considerando que a base produtiva alemã era nacional, dado que a base das indústrias mais importantes eram nacionais, não sendo uma ilha de indústrias estrangeiras nem paraíso fiscal, pergunta-se: de onde saiu o financiamento para os investimentos das empresas alemãs? E quanto os recursos para infraestrutura, para formar estoques, capital de giro, pesquisa, geração e transferência de tecnologia, etc.? De onde saiu o capital, sabendo então que não se deve ao “mercado de capitais” para dizer que é graças ao “livre mercado”? Como fica o discurso do capitalismo sem capital, baseado apenas no “empreendedorismo”? Querem mesmo acreditar que tudo isso foi sustentado com microcrédito?
Alguém já viu algum desses (neo)liberais exaltando a importância do BNDES? Pelo contrário, é ponto pacífico entre eles que uma instituição como essa não cabe na sua teoria, já que isso seria defender o “corporativismo”, o que, na mente deles, não é capitalismo. Pois bem, desde 1948 a Alemanha possui o seu “BNDES”, o KfW Bank [6], fundado com financiamento dos EUA via Plano Marshall [7][8], o que foi crucial para financiar as atividades produtivas alemãs (curiosidade: o BNDES fundado no Brasil também é um derivado de um programa que foi promovido pelos EUA). Assim, mais uma vez, a Alemanha optou por uma política que vai contra os princípios dos defensores do livre mercado, a qual foi fundamental e indispensável para este país se tornar uma potência econômica.
Considerações Finais

Bem antes do perdão e reestruturação da dívida alemã, a economia então se recuperava graças políticas de financiamento levando em conta também critérios geopolíticos — orientados pelo plano arquitetado pelo Secretário de Estado dos EUA George Marshall. Às lideranças do Departamento de Estado dos EUA interessava que o marco alemão fosse a moeda que daria suporte ao dólar na Europa. Criaram um mercado comum para o carvão e aço alemães, a Comunidade Europeia do Carvão e Aço [9], unindo Alemanha Ocidental, França, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Desde então a Alemanha passa a ser um país superavitário no comércio europeu.
Ou seja, sim, pode-se dizer que o capitalismo funcionou na Alemanha, mas jamais por via do liberalismo econômico. As reivindicações dos (neo)liberais sobre as conquistas da maior economia da Europa não cabem — e isso é algo que eles precisam aceitar e refletir a respeito. Ponto.
Mas e a moral da história? A moral da história é que as Economias Nacionais não são girinos nadando autonomamente num lago onde os que se esforçam mais viram sapos. Não são átomos, como na antiga concepção do que seriam átomos (e cuja atual seria menos “atomista”). Estados Nacionais Modernos, com sua economia nacional, são elementos funcionais do Sistema Mundial Moderno. É intelectualmente impróprio, caprichoso e infantil uma ideologia que lhes isola para analisar.
O correto, o maduro e o apropriado é começar por analisar como está a configuração do Sistema Mundial, a geopolítica e geoeconomia; como está sua dinâmica, quais são as atividades-chave pelas quais passam seus circuitos e cadeias econômicas, como está a dinâmica do valor adicionado por zonas geográficas e qual o papel que podem representar neste todo. Assim que se deve analisar responsavelmente um Estado Nacional e sua economia.
Como se vê, o discurso que explica o desenvolvimento alemão de acordo com a lógica do “laissez faire” não tem embasamento algum e serve apenas àqueles que insistem em ver Estados e Economias de uma forma reducionista.
Referências
[1] Jubilee Debt Campaign – How Europe cancelled Germany’s debt in 1953
[2] Revista Espaço Acadêmico – As experiências internacionais de renda mínima na redução da pobreza
[3] German History, Documents and Images – Revised Plan for Level of Industry in the Anglo-American Zones (PDF)
[4] US Inflation Calculator
[5] DW – A dura vida dos alemães logo depois da guerra
[6] KfW – Site oficial
[7] Marshall Foundation – Marshall Plan 1947-1997: A German View (PDF)
[8] KNAPP, Manfred; STOLPER, Wolfgang F.; HUDSON, Michael – Reconstruction and West-Integration: The Impact of the Marshall Plan on Germany
[9] DW – 1951: Criada a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço